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Pessoas assexuais são aquelas que sentem pouca, condicional ou nenhuma atração sexual, ou a sentem de forma diversa das expectativas normativas da sociedade, enquanto pessoas arromânticas possuem o mesmo conceito, porém em relação à atração romântica. Nesse sentido, pessoas assexuais e arromânticas seriam aquelas que identificam-se tanto como assexuais, quanto como arromânticas. A abreviação popularmente utilizada para referir-se a tais pessoas é aroace.
A influência midiática e a ideia de “pessoa certa”
Partindo de uma geração que cresceu assistindo o amor romântico vindo dos filmes da Disney, a noção de achar a sua “cara-metade” por muitas vezes é uma ideia que perdura durante muitos momentos da vida. Na maioria das mídias populares, o romance está incluso no pacote, e, com ele, o sexo vem para fechar esse combo. Tratar do sentimento de insuficiência que muitos aroaces sentem é tratar de toda uma vivência; de um problema que tem suas raízes fixadas de forma muito mais profunda do que se imagina.
Ao analisar filmografia, seja ela de qual estúdio for, nos mais variados gêneros é possível se deparar com um ponto em comum: o romance. A noção de amor romântico é a intersecção que vincula praticamente tudo o que é produzido em meios televisivos. De Star Wars até Carros, o romance está presente, ainda que como pano de fundo. É bastante raro, especialmente em mídias mais antigas, encontrar uma obra que não referencie o romance, seja da forma que for.
E é justamente diante desse cenário que milhares de pessoas aroaces cresceram, com o entendimento de que é o amor romântico, em conjunto com seu aspecto sexual, que faz o mundo girar.
Assim, é inegável a influência que os meios de comunicação exercem na sociedade. Diante do cenário exposto, não é difícil chegar à conclusão de que o bombardeamento de conteúdo que envolve o amor romântico instaura determinadas ideias na cabeça do público-geral.
Dentre essas ideias, destaca-se uma em específico: a de que sempre vai haver a pessoa certa para cada ume.
A “pessoa certa” é uma motivação. É um jeito de alguém chegar e falar: não se preocupe, você vai ser amade, você também vai viver toda essa experiência de ter um amor romântico. A “pessoa certa” é um respiro, um pedido de paciência. E, ao mesmo tempo, “a pessoa certa” é a desculpa que muites utilizam para justificar a falta de atração romântica e sexual, antes mesmo de saber o que, de fato, a arromanticidade e a assexualidade são.
É com base no ideal de “a pessoa certa” que inúmeros aroaces levam tanto tempo para descobrir que, de fato, são aroaces. Há um medo em admitir que algo que todes consideram tão certo e inevitável pode não acontecer com todo mundo — nega-se de todas as formas possíveis antes de buscar entender o que está acontecendo e o porquê daquilo.
“A pessoa certa” guia o aroace até elu descobrir que, na verdade, essa pessoa não existe. Que o amor não precisa ser necessariamente romântico, e que ele não precisa vir acompanhado de atração sexual. Pode haver amor sem atração sexual, pode haver atração sexual sem amor. E pode não haver nenhum dos dois, bem como suas variáveis. O modo de sentir não é delimitado por um padrão de certo ou errado: muito pelo contrário, sentir é algo totalmente individual.
Apenas a partir desse momento, dessa consciência em relação às várias formas de simplesmente existir, que ocorre a libertação da pessoa aroace. A libertação das amarras, limites e interpretações errôneas impostas por uma sociedade que está mais preocupada com relações românticas e sexuais do que com qualquer outra coisa.
A plena liberdade?
O discutido acerca da libertação de aroaces em relação a toda a gama do que foi imposto socialmente em relação à atração romântica e sexual, todavia, não é completa. Existe, sim, uma mudança na percepção de como aroaces enxergam as relações. Porém, elus ainda são imensamente afetades pelos padrões sociais, o que não permite uma liberdade em seu sentido irrestrito.
Tudo o que é diferente, assusta em um primeiro momento. Berenice Bento, em sua obra “O que é a Transexualidade?”, traz o conceito de centro e de margem ao afirmar que o processo de naturalização das identidades e a patologização fazem parte de um processo de produção de margens, sendo este um local habitado pelos seres abjetos, que ali devem permanecer. A partir dessa brilhante visão, podemos associar meras palavras com a realidade vivida: tudo o que foge a um determinado padrão, pautado na normatividade hétero, cis e allosexual/alloromântica, é imediatamente visto com estranheza e até ridicularizado.
A assexualidade e a arromanticidade são conceitos que a sociedade não abraçou completamente. A diferença, como afirmou Bento, é colocada na margem, passando a ser tratada como o exótico, o engraçado e o impensável.
Um claro exemplo desse fenômeno são os constantes tweets que questionam: “vocês namorariam uma pessoa assexual?”
Perguntas que parecem, de modo inicial, inofensivas, guardam em si o preconceito com aquilo que foge da referida normatividade. Quem é o assexual nesse contexto? É o outro, visto sob o olhar da estranheza. Aroaces são vistos de forma tão deturpada e estereotipada que fazem questão de colocá-los nesse lugar singular, onde namorar um assexual/arromântico é visto como a mais bizarra das ações, as quais apenas os mais corajosos conseguem enfrentar.
Relacionado a isso, claro, os estereótipos associados aos aroaces contribuem para a permanência nesse local marginalizado. Há uma desinformação tremenda rodando pelos grandes sites, os quais normalmente associam pessoas aroaces como frias e sem coração, para além de outros estereótipos que não interessa debater a fundo no presente texto. O ponto é que quem mais sofre com essa estigmatização é justamente uma população que já passou anos tentando descobrir o que havia de “errado” com ela, para chegar nesse local de pertencimento e ser arrancada do conforto pelo peso imposto pela sociedade em relação à noção de atração sexual e romântica.
A insuficiência aroace
Para além do descrito, não existe apenas um fenômeno externo sobre a marginalização aroace. Existe, de igual modo, um fenômeno interno baseado na culpa.
Muites aroaces sofreram com a concepção de que havia algo de errado com elus, como citado anteriormente. Porém, essa situação vem acompanhada de um ressentimento interno e uma culpa vivenciada por muites de não conseguir retribuir os sentimentos de outres, sejam esses sentimentos românticos ou sexuais.
No livro “Eu vos declaro, Aro”, da autora Alie, é discutido um pouco sobre o processo de descoberta da personagem arromântica. Nesse período de descoberta, antes de chegar a uma conclusão concreta, a personagem passa pelo processo de ter que negar vivenciar uma relação romântica pela falta de atração que sentia pelos outros personagens. Apesar de ficcional, essa realidade já foi e ainda é bastante experienciada por pessoas aroace. E ela, por muitas vezes, vem acompanhada por um sentimento de culpa por decepcionar o outro.
Existem aquelus que apaziguam essa culpa justamente com a ideia de “pessoa certa”, tendo em mente que não era para ser porque ainda viria uma determinada pessoa que daria origem a uma gama de novos sentimentos. Contudo, também existe quem convive com a culpa e se priva de inúmeras experiências por medo de situações parecidas voltarem a acontecer.
O que acontece, na verdade, é uma pressão que a sociedade exerce para que todos aqueles encontrem sua “cara metade” e vivenciem experiências não apenas românticas, como também sexuais. E dessa pressão há a sensação de obrigação, para pessoas aroaces, de retribuir os sentimentos destinados a elus.
Além disso, outra situação comum é a reação negativa e muitas vezes violenta de determinadas pessoas em relação à rejeição. Vídeos de pedidos públicos de namoro viralizam de tempos em tempos na internet. O que pode-se tirar dessa mídia é justamente o pavio curto que a sociedade, de modo geral, possui ao lidar com a rejeição. Pessoas que chutam buquês de flores quando recebem um “não”, em conjunto com reação de decepção vinda da multidão que assiste esses pedidos, são apenas alguns exemplos do constrangimento passado por aqueles que não se sentem à vontade para estar em um relacionamento naquele momento.
Tal situação, incômoda para qualquer um que a viva, apenas piora quando trata-se de uma pessoa aroace, a qual convive com a culpa, com o medo e com a sensação de ter algo de errado há muito tempo, talvez desde o início de sua existência.
Logo, vemos a construção de relacionamentos forçados, de pessoas embebidas na culpa, da sensação de que nada nunca parece ser o suficiente. Todo esse triste cenário apenas prova que o que pessoas aroaces precisam, acima de tudo, é de compreensão e informação acessível.
Pautas aroaces precisam ser trazidas para diversos setores da sociedade. A discussão em torno dos tipos de atrações precisa ser amplamente debatida e divulgada. Apenas com a disseminação de tais assuntos no meio social é possível mudar a concepção existente sobre pessoas aroaces. Estereótipos precisam ser quebrados e, acima de tudo, o conceito de centro e margem, trazido por Berenice Bento, deve ser desfeito pela própria sociedade.
Vivemos em um mundo plural, onde as diferenças precisam ser respeitadas e conversadas. O silêncio e o receio de muites em falar sobre vivências aroaces acaba sendo prejudicial à construção de uma vida digna a todes.