O guia (in)completo sobre a neolinguagem. Por: Viktor Bernardo Pinheiro O que é, como e quando utilizar a linguagem neutra.
Índice:
1. O que é?
Quando se fala de neolinguagem (ou linguagem neutra), é importante frisar que a construção da língua portuguesa tem uma estrutura binária, separando tudo entre feminino e masculino, e esta linguagem vem para mudar isto.
O latim, língua originária do português, possuía em sua estrutura três demarcações de gênero, sendo o neutro uma delas. No entanto, tal neutralidade se delimitava ao inanimado, não incluindo pessoas.
O fato de a língua portuguesa ter acabado com uma opção que foge da dualidade homem-mulher e nunca ter cogitado trazê-la de volta reflete tanto a cisnormatividade binária da sociedade quanto o machismo, que utiliza do masculino genérico para “neutralizar” os gêneros.
Sendo assim, a neolinguagem é uma proposta de reforma na língua na qual não será excluído nada, mas acrescentado uma forma neutra e acessível para que o português venha a se tornar cada vez mais inclusivo.
2. Quando utilizar
• Com pessoas que lhe pedirem
Na utilização dos pronomes, sejam quais forem, deve-se ser observado o conforto do sujeito. Sendo assim, se uma pessoa, seja cis ou trans, quiser utilizar algum pronome que fuja dos conhecidos “feminino” e “masculino”, não há problema algum nisso, e é importante respeitar essa decisão.
• Quando se dirigindo a mais de uma pessoa
A pauta da neolinguagem vem sendo trazida não apenas como uma linguagem inclusiva, porém também verdadeiramente neutra, fugindo do “masculino genérico”. Sendo assim, é proposto que ela seja utilizada ao se referir a grupos com duas ou mais pessoas que se sentem confortáveis com pronomes distintos.
• Com alguém que você não saiba os pronomes
Quando o sujeito é alguém que você não conhece, é improvável que você esteja ciente de como esta pessoa quer ser tratada. Caso você esteja falando com a pessoa, o ideal é perguntar como ela se sente confortável; no entanto, se esta não for uma possibilidade, o uso do neutro é o mais adequado.
Vale lembrar que o ideal é não presumir o gênero ou os pronomes de alguém com base em aparências, mas sim perguntar antes o modo no qual a pessoa prefere ser tratada e, acima de tudo, respeitar sempre seus pronomes.
3. Contra-argumentação
Seja com verdadeiras crenças, seja com o objetivo de mascarar o preconceito, muitas pessoas tentam afastar o crescimento da neolinguagem através de argumentos. No entanto, muitos deles são falhos, e é importante entender a eficiência da neolinguagem e saber combatê-los.
• “Pessoas com deficiência ou neurodivergentes não conseguiriam aprender a neolinguagem”
Quando visto além de uma perspectiva capacitista, o argumento não faz sentido. A deficiência ou neuroatipicidade de alguém não faz dessa pessoa incapaz de compreender ou até mesmo utilizar a neolinguagem.
• “Pessoas pobres e marginalizadas não têm acesso, ou possuem outras preocupações além disso”
Quando falamos sobre desigualdade social, é importante saber direcionar a culpa. Educação precária, desigualdade econômica e outros problemas do tipo são frutos de um longo histórico de opressão, especialmente a pessoas negras ou racializadas de modo geral. São problemas sociais, e por isso devem ser cobrados do governo.
• “Tem coisas mais importantes pelo o qual lutar”
Infelizmente, em nossa atual sociedade, os problemas e opressões são incontáveis. No entanto, são também inigualáveis, e não seria correto colocá-los em uma balança. Toda violência deve ser combatida, e uma pauta não anula a outra.
• “O masculino já é neutro, não tente mudar a língua”
O português, enquanto uma língua viva, está sempre em transformação, com mudanças lentas e de acordo com a necessidade e o uso popular. A língua deve se adequar a seus falantes, e não o contrário.
4. X e @
No início da luta pelo uso da neutralidade na língua portuguesa, o X era pautado e até foi utilizado por certo período de tempo aqui no Brasil.
• Artigo: x → Elx é bonitx. • Pronome: elx/delx → Este lápis é delx. • Desinência: x → Elx é x mais espertx.
• Artigo: @ → El@ é bonit@. • Pronome: el@/del@ → Este lápis é del@. • Desinência: @ → El@ é @ mais espert@.
Hoje, no entanto, entende-se que o uso do X, tal qual o uso do @, é inviável.
Além de ser impronunciável no dia a dia, é inacessível também na mídia, visto que pode confundir, por exemplo, leitores de tela de pessoas com deficiência visual, além de em alguns casos afetar também pessoas disléxicas. É ilegível e acaba por fazer com que a pessoa perca a informação.
5. Utilizando
Em termos de neutralidade, no português o ideal é utilizar a linguagem do e/u.
• Artigo: e → Elu é bonite. • Pronome: elu/delu → Este lápis é delu. • Desinência: e → Elu é ê mais esperte.
No entanto, existem outros tipos de neolinguagem. Estas devem ser utilizadas em ocasiões específicas, ou seja, quando alguém as solicitar.
• Artigo: e → Ile é bonite. • Pronome: ile/dile → Este lápis é dile. • Desinência: e → Ile é ê mais esperte.
Além disso, também é possível neutralizar a frase.
Esta pessoa é bonita.
No caso acima, a terminação em -a se torna neutra por estar concordando com pessoa, um substantivo de gênero gramatical feminino, mas que pode ser usado para todes, independente de gênero social ou pronome.
5.1. Pronomes
Pronome é a classe de palavras que substitui o substantivo. Ele indica a pessoa do discurso e situa o tempo e espaço.
Ele e ela → elu/éli/ile/el/ila/ilo Dele e dela → delu/déli/dile/del Meu e minha → mi/minhe Seu e sua → su/sue Teu e tua → tu/tue Nele e nela → nelu/néli/nile/nel Nosso e nossa → nosse Aquele e aquela → aquelu/aquéli/aquile
Obs: Enquanto linguagem neutra, o ideal é utilizar elu e seus derivados.
5.2. APF
É comum ver o modelo pronome pessoal/pronome possessivo ser utilizado. Este formato, no entanto, foi traduzido do inglês, e não se encaixa tão bem na complexidade da língua portuguesa.
O modelo APF consiste de um conjunto para informar a linguagem pessoal, isto é, o modo pelo qual a pessoa prefere ser tratada.
A → artigo P → pronome F → final de palavra/flexão de gênero (desinência)
Exemplificando:
• Artigo: a → Ile é bonito. • Pronome: ile/dile → Este lápis é dile. • Desinência: o → Ile é a mais esperto.
O seu conjunto pessoal pode variar de acordo com o modo que lhe deixa mais confortável.
5.3. Plural
Para o plural, usualmente basta adicionar -s no final da palavra.
• Bonitos, bonitas, bonites • Famosos, famosas, famoses • Famintos, famintas, famintes
Algumas palavras no plural já terminam em es, mesmo no masculino. Nestes casos, o plural fica em -ies.
• Professores, professoras, professories • Deuses, deusas, deusies • Cantores, cantoras, cantories
Obs: Algumas pessoas optam por manter o -es, ou por utilizar o -ie no singular também.
• Professore / professorie
5.4. Regras especiais
Em alguns casos, a adição do -e no final da palavra não é o suficiente. Por isso, algumas regrinhas devem ser levadas em consideração.
Palavras terminadas em ca/co adquirem qu
• Fraco → Fraque • Médica → Médique • Músico → Músique
Palavras terminadas em ga/go adquirem gu
• Amigo → Amigue
Palavras terminadas em ça/ço adquirem -ce
• Moça → Moce
Palavras terminadas em –ão e -ã viram -ane
• Cristão → Cristane • Irmão → Irmane
Em palavras terminadas em triz não se adiciona o -e no triz
• Ator e Atriz → Atore
Obs: Na língua portuguesa, algumas palavras terminadas em -triz não são realmente a versão feminina dela. Um exemplo é a palavra embaixatriz.
Em tese, a sua versão masculina seria embaixador. No entanto, a terminação em -triz não indica mulher com o mesmo cargo que o embaixador, e sim mulher do embaixador. Neste exemplo, o cargo correto seria embaixadora.
Outros:
• Gêmea/gêmeo → gemini/gemiê
Mãe/Pai:
Em alguns casos, a palavra para o feminino e a palavra para o masculino são diferentes demais para que seja adicionado o -e. Nestes, é preciso uma nova palavra.
• Mãe/pai → Nan • Mamãe/papai → nanan • Materna/paterno → naterne • Maternal/paternal → naternal • Madrinha/padrinho → nadrinhe • Madrasta/padrasto → nadraste
Como a neolinguagem ainda está sendo implementada, é possível existir mais de uma sugestão de palavra para os mesmos termos.
• Pãe • Zazá • Fao • Progenitore/responsável
5.5. Outros
O termo “não-binário”, utilizado como guarda-chuva para definir identidades que se encontram além dos gêneros socialmente impostos, traz muitas confusões. Afinal, não-binário é um termo neutro? Sim e não.
a. Sam Smith é não-binário.
No exemplo a, é possível presumir que o termo vem acompanhado da palavra “gênero”, assim concordando com ela e tendo sua finalização em -o, como visualizado no exemplo b.
b. Sam Smith é (do gênero) não-binário. c. Sam Smith é não-binárie.
No exemplo c, o termo, como predicativo do sujeito, concorda com ele. No caso, sendo Sam Smith uma pessoa que utiliza pronomes neutros, o termo flexiona de acordo com esses pronomes, ou seja, no neutro.
• Ile é não-binárie. • Elu é não-binárie. • Ela é não-binária. • Ele é não-binário.
Manter o termo no masculino, concordando com a palavra gênero, não é errado; mas flexioná-lo pode evitar desconfortos desnecessários.
6. Dúvidas
É importante pontuar que a neolinguagem é algo novo, e é comum levar algum tempo para pegar o jeito. Treine aos poucos e logo sua linguagem será inclusiva.
Dito isto, espero que o guia tenha tirado suas principais dúvidas e auxiliado da melhor maneira possível o processo de aprendizagem da linguagem neutra. Divulgue-o em suas redes sociais para que a neolinguagem se torne cada vez mais conhecida.
Qualquer dúvida ou sugestão pode ser dirigida aos perfis da @lgbtqspacey e/ou através do endereço de e-mail duvidas@lgbtqspacey.com.
Obrigado!