O direito à Lei Maria da Penha

A violência doméstica é um problema que atinge milhões de pessoas em todo o mundo, atravessando classes sociais, faixas etárias, raças, gêneros e orientações sexuais. No entanto, as mulheres se tornam vítimas dessa forma de violência com mais frequência devido ao modelo patriarcal e misógino da sociedade. Ela pode se manifestar de maneira física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral; e quase sempre, mas não exclusivamente, dentro do próprio lar.

No Brasil, a luta contra a violência doméstica ganhou visibilidade a partir de mobilizações de mulheres e movimentos sociais que denunciaram abusos ao longo dos anos. Dentre elas, está Maria da Penha, que conquistou a promulgação da Lei Maria da Penha em 2006, um marco no enfrentamento à violência de gênero.

Mas o que é a Lei Maria da Penha e como ela surgiu? 

Sancionada em agosto de 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei Maria da Penha conta com 46 artigos distribuídos em 7 títulos, criando mecanismos para prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra as mulheres e pessoas que se identificam com o gênero feminino.

Após anos sofrendo abusos e violência de seu marido, inclusive dupla tentativa de feminicídio, Maria da Penha recorreu à justiça com a ajuda de familiares e amigos. Foi só depois de oito anos, em 1991, que o caso veio a julgamento; no entanto, mesmo com a sentença de 15 anos, o agressor saiu do fórum em liberdade. Esse foi só o começo dos descasos por parte do Estado e da Justiça. 

Em 1996, houve um segundo julgamento, que determinou uma sentença de 10 anos que também não foi cumprida. Em contrapartida, diante da falta de medidas legais e ações efetivas, o caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA). Ainda assim, nada aconteceu com o agressor.

Então, em 2001, o Estado foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras. Já em 2002, foi formado um consórcio de ONGs feministas para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, o que finalmente levaria à criação da lei em 2006.

O caso Maria da Penha representa a violência doméstica sofrida por mulheres em todo o Brasil. Sua trajetória em busca de justiça durou 19 anos e 6 meses, e isso fez de Maria da Penha um símbolo da luta por uma vida livre de violência. Autora do livro Sobrevivi… posso contar (1994) e fundadora do Instituto Maria da Penha (2009), Maria segue compartilhando sua experiência por meio de palestras e lutando por essa causa que afeta milhares de mulheres e meninas em todo o mundo.

Quem tem direito à Lei Maria da Penha

Além das mulheres que sofrem violência dentro dos próprios lares, o artigo 5º da Lei Maria da Penha define que se configura como violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano moral ou patrimonial, seja no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de coabitação.

Sendo assim, é possível aplicar a Lei Maria da Penha em situações que envolvem qualquer vínculo familiar ou afetivo, por exemplo, violência praticada por pais contra filhas, filhos contra mães, entre cunhados, etc. O objetivo é a proteção da mulher, considerando a desigualdade de gênero como fator para os atos de violência. 

A Lei Maria da Penha e os direitos da comunidade LGBTQ+

Reconhecendo a necessidade de proteger todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, em 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a Lei Maria da Penha também se aplica às mulheres trans e às pessoas LGBTQ+, incluindo casais homoafetivos masculinos, em relações afetivas e familiares. 

Uma vez que existem pessoas de gêneros marginalizados para além das mulheres (cis e trans), essa mudança se torna importante para incluí-las. Os relacionamentos abusivos dentro das relações LGBTQ+ sempre foram um assunto tabu, pouco discutido até mesmo dentro da comunidade, e essa mudança na lei trará luz para essa temática e permitirá que haja mais denúncias e, assim, mais justiça.

No livro Na casa dos sonhos, Carmen Maria Machado reflete sobre as nuances de um relacionamento abusivo entre pessoas LGBTQ+, mais especificamente entre mulheres. Em um dos capítulos, ela comenta uma fala da pesquisadora de estudos da mulher e de gênero Janice L. Ristock sobre como “a lesbianidade não era só impronunciável, mas também ‘legalmente inimaginável’”, referindo-se a casos de violência doméstica entre mulheres nos séculos XIX e início do século XX e detalhando como muitos desses casos ficavam impunes, visto que a justiça não sabia lidar com o fato de que a violência ocorrera em um relacionamento entre pessoas do mesmo gênero. Em dado momento, ela diz: “Certas vítimas não são reconhecidas pelo sistema”. Por esse exato motivo, incluir gêneros e orientações dissidentes em uma Lei como a Maria da Penha não é apenas simbólico, mas faz uma diferença real na vida dessas pessoas.

Como os outros países enfrentam a violência doméstica? 

Apesar da violência de gênero atingir todo o mundo, nem todos os países têm legislações como a do Brasil, que, apesar de falha, é uma das mais completas sobre o tema e inspirou diversas outras iniciativas. 

Por exemplo, no México, a Lei Geral de Acesso das Mulheres a uma Vida Livre de Violência, de 2007, foi inspirada pela Lei Maria da Penha, e em 2020, o país aprovou um decreto que altera e acrescenta várias disposições a essa lei, incluindo novos mecanismos de proteção e punição para a violência contra mulheres, como violência doméstica, familiar, sexual e psicológica. 

Em 2009, na Argentina, foi sancionada uma lei que garante a “proteção integral para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher nos âmbitos em que desenvolvem suas relações interpessoais”. E, em El Salvador, em 2011, foi publicado o  decreto da Lei Especial Integral para uma Vida Livre de Violência para as Mulheres.

Mais para o norte, nos Estados Unidos, em 1994, foi aprovado o Violence Against Women Act (VAWA), um marco na história norte-americana que aborda a violência doméstica, a violência no namoro, a agressão sexual e o stalking. A lei financia grupos de apoio, casas e abrigos para mulheres vítimas de violência doméstica, além de apoiar o treinamento de pessoal que presta serviços a vítimas de violência por parceiro íntimo. Em 2013, foram adicionadas novas disposições que também protegem pessoas LGBTQ+ e vítimas de tráfico de pessoas; porém, infelizmente, não abrangem a população imigrante.

Há ainda a Lei de Proteção das Mulheres contra a Violência Doméstica, na Índia, aprovada em 2005. A norma protege as mulheres contra a violência física, sexual, verbal, emocional e econômica e contra ameaças.

Na Indonésia, a Lei de Proteção contra a Violência Doméstica (n.º 23 de 2004) define e criminaliza a violência doméstica, abrangendo qualquer ato que cause dano físico, sexual, psicológico ou abandono do lar, ou que envolva ameaças, coerção ou privação de liberdade dentro do contexto familiar.

Já na Coréia do Sul, a prevenção e a proteção contra a violência doméstica são abrangidas por duas leis principais, ambas adotadas em 1997: a Lei sobre a Prevenção da Violência Doméstica e Proteção das Vítimas (“Lei de Prevenção da Violência”), a qual permite que a polícia tome medidas em casos de violência doméstica, incluindo a proteção da vítima e a remoção do agressor; e a Lei sobre Casos Especiais Relativos à Punição de Crimes de Violência Doméstica (“Lei Especial para a Punição da Violência Doméstica”).

No Japão, a Lei de Prevenção à Violência Doméstica (2001, revisada em 2004, 2007 e 2013), abrange toda agressão que parte do cônjuge, companheiro(a), namorado(a), ex-cônjuge ou membro da família, não distinguindo gênero, porém elaborada com base no gênero feminino.

No continente africano, foi criada em 2023 a Convenção da União Africana sobre o Fim da Violência Contra Mulheres e Meninas (AUCEVAWG), um instrumento legal voltado para a prevenção e eliminação de todas as formas de violência contra mulheres e meninas na África criado por uma decisão histórica dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana (UA). Além disso, há o Protocolo de Maputo, que entrou em vigência em 2005. Esse marco garante os direitos das mulheres africanas, incluindo proteção contra violência baseada no gênero. Esse protocolo faz parte da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Em Moçambique, a Lei n.º 29/2009 criminaliza a violência doméstica não só contra mulheres, mas também entre pessoas do mesmo sexo. No Essuatíni, em 2018, foi promulgada a Lei sobre Crimes Sexuais e Violência Doméstica, que abrange também as relações entre pessoas do mesmo sexo, assim como no Quênia.

A importância da Lei Maria da Penha 

A Lei Maria da Penha é considerada uma das legislações mais avançadas do mundo no combate à violência doméstica, e ela tem gerado avanços concretos em favor do gênero feminino na justiça, como a medida protetiva de urgência e os Juizados de Violência Doméstica e Familiar, além de campanhas educativas que ajudam a trazer visibilidade à questão. 

Porém, apesar desses avanços, a lei não garante o fim do problema. É preciso criar cada vez mais conscientização para que as pessoas conheçam seus direitos e a lei possa, de fato, ser colocada em prática. Além disso, é fundamental conhecer sua história, entender seus desafios e refletir sobre sua aplicação para se seguir em busca do direito universal de viver sem violência.


Referências


Ficha técnica

Escrita: Bettina Winkler
Leitura crítica: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Déborah Ramos e Beatriz Janus