Todos têm de lidar com as estruturas sociais nas quais estão inseridos: uma lista de exigências para requerer um mero documento de identidade ou o preenchimento de critérios para concorrer a uma vaga de emprego são exemplos simples de situações meramente estruturais. As estruturas sociais, políticas e econômicas de uma sociedade são pensadas de acordo com as necessidades do grupo que as concebeu, e a partir disso o filósofo Silvio Almeida refere-se a um sistema de opressão enraizado nas estruturas que não se limita a atitudes individuais, mas permeia instituições e práticas, perpetuando desigualdades sistêmicas.
No dia-a-dia, todos têm atitudes frutos do racismo sistêmico, que gera ações racistas mesmo sem a intenção. A internalização de ideias racistas e colonialistas influencia a forma como pessoas negras são percebidas até mesmo por outras pessoas negras ou pardas. Por exemplo, ao passar na rua por um homem negro de capuz, muitos julgariam se tratar de uma possível ameaça, enquanto o mesmo não pode ser dito sobre um homem branco com a mesma frequência. A atração exclusiva por pessoas brancas ou com traços considerados belos pelo padrão europeu também é uma consequência do racismo internalizado e do racismo estrutural.
O conceito de raça, por si só, já denota uma diferenciação; no entanto, a diferenciação contemporânea entre categorias de humanos com base em “raças” remete ao século XVI. O racismo manifesta-se com o preconceito e toma forma na discriminação racial, mas não deve ser compreendido como um fenômeno apenas presente no âmbito de crenças e comportamentos individuais. Pelo contrário, o racismo é na verdade um fenômeno estrutural, uma forma sistemática de discriminação que se constrói com processos históricos e processos políticos.
Esse fenômeno, a princípio, tem suas origens no sistema colonialista, que permitiu a transmissão de ideias e o funcionamento estatal europeu nas américas, o que, somado ao subsequente comércio transatlântico de escravos, criou hierarquias raciais e disseminou ideias e estereótipos racistas. Com o passar dos anos, leis e políticas públicas foram criadas sem a devida reflexão e considerando apenas as classes dominantes, intensificando a desigualdade e perpetuando-a. Com as mídias populares, que chegam com a modernidade, filmes, televisão e músicas acabam disseminando representações estereotipadas e preconceituosas de pessoas racializadas, criando o caldo político-cultural que segrega de maneira silenciosa, enraizado em instituições e com reflexos em nosso cotidiano, resultando na discriminação e desigualdade raciais mesmo na ausência de intenções individuais discriminatórias, o racismo estrutural.
Ao longo da história, a construção do conceito de “homem” passou por modificações relativas à ideologia de seu período econômico e social. Esse conceito também implicava o “não-homem”, ou o “homem inferior”, como a concepção de povos civilizados e primitivos, ou a da superioridade por determinismo biológico ou geográfico. Especialmente através do processo da colonização e da escravização dos povos negros, uma distinção passou a se intensificar entre os brancos e pretos, servindo a favor de um sistema econômico e social que dependia da discriminação dos pretos, de vê-los como “menos humanos”. No segundo episódio do podcast “Projeto Querino”, explora-se a história da escravidão do Brasil. Diferente do que muitos imaginam sobre esse período, o programa traz uma ideia de mundo muito mais sombria: a naturalização da escravidão no Brasil era tão grande que um terço dos chefes de família brasileiros possuíam pelo menos um escravizado. E esse sistema baseado na subjugação dos povos escravizados era o mais lucrativo.
O racismo também deve ser compreendido como uma falta de poder político, como comenta Silvio de Almeida “(o racismo) como processo sistêmico de discriminação que influencia a organização da sociedade, depende de poder político; caso contrário seria inviável a discriminação sistemática de grupos sociais inteiros.”. É essa falta de poder político que viabiliza a extensão da discriminação racial. Na época da escravidão, a discriminação era amplamente viabilizada, e nos tempos modernos, são viabilizadas ainda tantas discriminações e violências, como o encarceramento em massa e a violência policial contra pessoas pretas.
Além dessas faces, Dennis de Oliveira ainda adiciona que o racismo estrutural compreende os aspectos materiais, os ganhos materiais que uma ideologia de diferenciação entre humanos proporciona. Citamos acima, por exemplo, a lucratividade do sistema baseado em trabalho escravo. Segundo o autor, o racismo pode ser compreendido através da perspectiva histórico-crítica, como uma manifestação dentro da luta de classes, criticando a ideia de que o racismo estaria oposto a erudição, colocando-o como uma escolha ideológica das classes dominantes, não por falta de conhecimento, mas por interesses materiais.
É importante destacar que compreender o racismo como um fenômeno estrutural não significa retirar a responsabilidade de indivíduos e instituições discriminatórias, mas sim, alcançar a raiz do problema. Também é importante o entendimento de que o racismo, embora fruto da luta de classes, não se restringe a algo gerado por ela nem pode ser combatido apenas com o fim da luta de classes. Compreender o racismo como estrutural é saber não reduzir o discurso antirracista, atingindo as estruturas que são base para que esse ocorra, sabendo assim como combatê-lo.
Referências:
- Silvio de Almeida; 2019- Racismo Estrutural. (Livro).
- Dennis de Oliveira; 2021- Racismo Estrutural: Uma perspectiva histórico-crítica. (Livro).
- Projeto Querino, ep 2: O pecado original. (podcast).
Ficha Técnica:
Escrita: Anônime e Bibiana Christofari Hotta
Leitura crítica: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Lívia Figueiredo