Um quilombo é uma comuna?

Para responder a esse questionamento, é importante, primeiramente, compreender  o que é uma comuna e o que é um quilombo. 

O termo comuna origina-se do francês commune (cidade), que, por sua vez, é proveniente do latim communia, de communis, que significa “comum”. Seu primeiro uso registrado na história ocorreu no século XII, na Idade Média, especialmente na França e na Itália, designando cidades dotadas de direitos e autonomia, que eram livres do poder e domínio dos senhores feudais. Por outro lado, em Portugal, eram denominadas comunas os agrupamentos de mouros e judeus, que viviam separados do restante da população, em bairros distintos dentro das cidades. Esses grupos tinham legislação, costumes e religião próprias.

Posteriormente, houve um dos mais famosos usos do termo comuna: a Comuna de Paris. Instituída em 1871, na França, a Comuna de Paris é considerada o primeiro governo operário da história, surgido a partir de uma revolta popular em resposta à profunda desigualdade social e precarização do trabalho que assolavam a cidade de Paris à época. 

Embora tenha durado apenas 72 dias, organizando-se sob preceitos socialistas, a Comuna de Paris implementou mudanças significativas na cidade, como a separação entre Estado e Igreja, a redução da jornada de trabalho para oito horas diárias, a igualdade entre homens e mulheres, e a implementação de uma educação gratuita e laica, entre outras medidas. A Comuna de Paris foi um marco histórico para o movimento socialista, tendo estabelecido precedentes importantes para a Revolução Russa e a Revolução Chinesa.

Os diferentes usos associados do termo comuna, ao longo da formação política e econômica das nações, sobretudo as europeias, têm como base comum o agrupamento local e a autonomia política e econômica.   

No que diz respeito aos quilombos, o termo tem origem na palavra kilombo, proveniente da língua quimbundo, derivada do banto, significando “local de descanso ou local de acampamento”. A partir da luta dos negros escravizados por liberdade e independência durante o período do Brasil Colônia e Império, o termo quilombo passou a se referir às comunidades formadas por pessoas escravizadas que resistiam ao regime escravocrata vigente. O maior e mais importante dos quilombos, o Quilombo de Palmares, abrigava negros, indígenas e outras etnias marginalizadas e subjugadas pelas elites dominantes, em uma comunidade autônoma e de ação política anti-escravagista considerável. 

Ainda que paralelos entre essas duas formas de organização sócio-político-econômica, comuna e quilombo, possam ser facilmente traçados, os quilombos possuem características e vivências próprias, além de possuírem marcação étnica, histórica e geográfica específicas. Enquanto as comunas nasceram de movimentos e aglomerações europeias, os quilombos são frutos da resposta  da África e da América à invasão europeia e carregam marcas da herança colonial que os países desse continente impuseram aos povos africanos e americanos.

Além disso, quilombos simbolizam a luta e a resistência de povos escravizados, relegados a uma realidade dura e opressiva imposta do outro lado de seu continente. A longevidade dessa simbologia se mantém não somente como um capítulo importante da história da população negra no Brasil, mas também na continuidade desses agrupamentos, através das comunidades quilombolas, formadas por remanescentes dos quilombos e que totalizam, atualmente, cerca de 6 mil localidades, distribuídas por todo o país. 

Os movimentos negros brasileiros incorporam, às bases da sua afirmação e organização política contra o racismo contemporâneo, a luta pela emancipação negra iniciada e perpetuada pelos quilombos. As comunidades quilombolas mantêm viva a história dos quilombos tanto por sua existência quanto pela reivindicação de reconhecimento, de direitos e de territórios, perante a tentativa de apagamento e marginalização por um Estado e sociedade racistas. 

Assim, em relação à forma de organização e à autonomia política, o quilombo pode, sim, ser considerado uma comuna. Porém, os quilombos, por suas inúmeras particularidades, transcendem as definições de comuna. A importância dos quilombos, assim como sua existência, resiste ao tempo e ao espaço, não encontrando fronteiras ou limites para seu legado e influência, de modo que seria um verdadeiro equívoco reduzi-los a meras comunas negras latino-americanas.


Referências


Ficha técnica

Escrita: Mell Martem
Revisão: Brian Abelha e Jéssica Larissa O.S.