A comunidade LGBTQIAPN+ enfrenta, diariamente, diversas formas de violência. Na comunidade lésbica, essa violência surge em diferentes aspectos. Um deles é a saúde; principalmente, a saúde sexual.
Conforme o Juramento de Hipócrates — solenidade realizada pelos médicos no período que marca a conclusão acadêmica —, o profissional da saúde não deve permitir que considerações pessoais ou fatores sociais interfiram no seu dever, ou seja, no exercício da profissão pautado pela seriedade e acolhimento com ê paciente. Isso inclui, também, o respeito à orientação sexual. Entretanto, não é o que verdadeiramente acontece.
Há uma falta de conhecimento e treinamento adequado quando se fala sobre a sexualidade de pessoas lésbicas, sejam elas cis ou não. A invisibilização que a comunidade sofre poderia ser atribuída, à primeira vista, à ignorância ou à incultura — o que já seria problemático, considerando que pessoas lésbicas existem há séculos, ainda que sob outra nomenclatura. No entanto, as camadas que envolvem essa discussão são muito mais complexas e profundas, atravessando construções culturais, sociais e econômicas consolidadas ao longo dos séculos.
A cis-heteronormatividade e a opressão de gênero podem, de certa forma, explicar como essas desigualdades de acesso à saúde acontecem, e porque acontecem. Mas ambas têm origem em um fator comum. Onde, então, se inicia a raiz de todo o problema?
Em seus discursos, Angela Davis defende que o patriarcado e o capitalismo andam de mãos dadas para a manutenção do sistema: na forma que a sociedade funciona, como as normas são padronizadas e estabelecidas, como a moral é imposta… Tudo isso, a longo prazo, molda as estruturas de crença dos indivíduos de uma sociedade. São engrenagens políticas que se retroalimentam.
É nesse ponto que a cis-heteronormatividade e a opressão de gênero reaparecem no cenário. Sendo o patriarcado a base indispensável para a sustentação do sistema capitalista, tudo o que o contraria tende a ser marginalizado, discriminado e lido como anormal. Logo, a lesbianidade também se enquadra nesse pacote.
O Estado ainda fornece pouco suporte e fontes necessárias para que a formação de profissionais seja, de fato, abrangente e inclusiva. Grande parte da literatura ainda é baseada em conceitos antiquados — seja relacionado às multiplicidades de gêneros, às orientações sexuais ou às vivências particulares. Sem uma formação adequada nesse sentido, a abordagem desses agentes de saúde tende, por consequência, a seguir os parâmetros impostos pelo sistema, direta ou indiretamente; o que resulta na desigualdade de tratamento e acesso à saúde para a comunidade.
Muitas pessoas lésbicas compartilham a forma em que são tratadas durante consultas médicas. Grande parte delas tem suas práticas sexuais invisibilizadas, violentadas e tratadas com descaso. A falta de preparo é tão evidente que, por ignorância, muitos profissionais ainda acreditam que pessoas lésbicas não são suscetíveis a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) — uma crença que já se provou, cientificamente, equivocada.
A vergonha e o receio do preconceito acabam sendo fatores que afastam muitas pessoas lésbicas da busca pela própria saúde sexual. Algumas procuram informações por conta própria; outras sequer possuem recursos necessários para isso.
Entretanto, esse é um dever que o Estado deveria cumprir, por meio da divulgação de informações verídicas e de qualidade sobre o tema, além da garantia de uma formação digna para os atuais e futuros profissionais da área da saúde. Tudo isso deve considerar que o destratamento, a desumanização e a patologização enfrentados por pessoas lésbicas, a partir do momento em que se reconhecem em suas identidades e formas de relacionamento, são não apenas atos criminosos, mas também problemas sociais e de saúde pública que precisam ser tratados como tais.
Logo, é sempre importante relembrar que o direito ao acesso à saúde de qualidade, com assistência humanitária, digna e respeitosa, é um direito constitucional garantido por lei (Art. 196.), e deve ser assegurado a todes.
Referências
- RIO DE JANEIRO (Município). Secretaria Municipal de Saúde. Subsecretaria de Atenção Primária, Vigilância e Promoção da Saúde. Superintendência de Promoção da Saúde. Cadernos de promoção da saúde: saúde da população LGBTI+. Rio de Janeiro: SMS-RJ, 2023. Disponível em: subpav.org. Acesso em: 22 abr. 2025.
- Lésbicas trans existem.
- ALMEIDA, G. M. et al. Discursos sobre o cuidado em saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, e180279, 2019. Disponível em: scielo.br. Acesso em: 22 abr. 2025.
- MARQUES, A. M.; OLIVEIRA, J. M.; NOGUEIRA, C. A população lésbica em estudos da saúde: contributos para uma reflexão crítica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 7, p. 2025-2034, jul. 2013. Disponível em: scielo.br. Acesso em: 22 abr. 2025.
- DAVIS, Angela. As mulheres trabalhadoras, a classe e o feminismo. In: DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 88. Disponível em: Boitempo Editorial.
- FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRÃO PRETO – USP. Juramento de Hipócrates (versão revista na 68ª Reunião da AMB e CFM). Ribeirão Preto: FMRP-USP, [s.d.]. Disponível em: fmrp.usp.br. Acesso em: 22 abr. 2025.
- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: jusbrasil.com.br. Acesso em: 22 abr. 2025.
Ficha técnica
Escrita: Nunu Pítaro
Leitura crítica: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Jéssica Larissa O.S. e Brian Abelha