Falar de cinema queer é, antes de tudo, compreender o significado do termo queer (ou cuír/cuir, na forma “aportuguesada”). Originalmente utilizado de forma pejorativa contra pessoas LGBTQIAPN+, o termo foi ressignificado pela comunidade, ganhando um sentido político que vai além de identidade de gênero ou sexualidade. Hoje, queer está associado a tudo que rejeita a heteronormatividade e questiona as barreiras entre o que é socialmente aceito e o que é marginalizado. Assim, quando se fala de cinema queer, refere-se a narrativas cinematográficas que não apenas retratam personagens LGBTQIAPN+, mas abordam as questões sociais que envolvem essas identidades.
Não é necessário que essas narrativas sejam tragédias focadas em todas as dificuldades que uma pessoa queer pode enfrentar. O importante é que diferentes gêneros do cinema apresentem aspectos do que significa ser LGBTQIAPN+ na sociedade. Esse tipo de produção começou a ganhar destaque a partir da década de 1980, com a “crise da AIDS”, e teve um desenvolvimento significativo a partir dos anos 90, quando essas produções começaram a ser premiadas dentro de festivais. Isso fez com que cada vez mais produções desse tipo ganhassem espaço e reconhecimento.
Ainda sobre isso, em seu artigo “New Queer Cinema”, B. Ruby Rich discute o circuito cultural de filmes que marcou o início do protagonismo queer nos cinemas. Rich destaca que um dos aspectos mais importante dessas produções é a recusa em higienizar pessoas LGBTQIAPN+ para torná-las palatáveis ao público cisheteronormativo. Esses filmes evitam apresentar histórias com um ponto moral indiscutivelmente claro, como é o caso de Swoon – Colapso do Desejo (1992). É inegável o impacto que a crise da AIDS teve nessas produções, o qual se manifesta na forma, temática e estética dos filmes. A mensagem é direta: a arte queer existe e não pode mais ser ignorada.
Rich menciona especialmente três festivais que marcaram o nascimento do New Queer Cinema: o Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF), que aconteceu em 1991; o Festival de Cinema Gay e Lésbico de Amsterdã, realizado no mesmo ano; e o Festival de Sundance, em Park City, em 1992. No festival de Amsterdã, ficaram evidentes as preferências de grandes produtoras por filmes dirigidos por homens e pelo formato longa-metragem. No entanto, Rich ressalta que o festival estava cheio de pessoas queer de todos os tipos, do público às telas. Foram eventos como esse que abriram caminho para que Moonlight (2016) concorresse e ganhasse o Oscar de Melhor Filme, além de acumular mais duas estatuetas no mesmo ano.
Clássicos de cinema queer
Aviso: alguns dos filmes citados neste texto possuem gatilhos para LGBTQfobia, violência e diversos temas sensíveis. Considerem checá-los antes de assistir aos filmes.
Apesar de existirem produções anteriores aos festivais, como Festim Diabólico (1948) — com seu forte subtexto queer —, e The Rocky Horror Picture Show (1975), — inicialmente mal recebido pela crítica, mas que logo ganhou popularidade nas sessões da meia-noite —, o cinema queer só foi ganhar o devido reconhecimento a partir do movimento do New Queer Cinema, com a maioria dos seus clássicos tendo sido lançados após 1991.
Paris is Burning (1990), de Jennie Livingston, é um documentário sobre a cena drag queen nova-iorquina nos anos 80. O filme retrata a cultura dos bailes e as comunidades negras, latinas e queer envolvidas nesse universo. Esses bailes são espaços para que a cultura queer possa existir dentro do glamour e da fama, elementos historicamente negados a essas pessoas dentro da cultura dominante. A obra ganhou o grande prêmio do júri no festival de Sundance e inspirou muito do que é possível acompanhar no reality show RuPaul’s Drag Race, sucesso absoluto de audiência.
Edward II (1991), dirigido por Derek Jarman, é um trágico romance histórico sobre o relacionamento entre o rei Edward II e seu amigo e amante Piers Gaveston. Baseado na peça homônima de Christopher Marlowe, o filme aborda o conceito do amor proibido, mas que, ao mesmo tempo, se coloca de forma velada à vista de todos. Jarman escolheu a música Every Time We Say Goodbye, de Cole Porter — cantor e compositor gay que se casou com Linda Lee Thomas — para compor a cena da separação de Edward e Piers. O filme traça um paralelo sobre a vivência queer e de seus afetos no passado, presente e futuro.
The Watermelon Woman (ou A Mulher Melancia, em português), dirigido e escrito por Cheryl Dunye, é um filme de 1996. Foi o primeiro longa dirigido por uma mulher negra lésbica e ganhou o prêmio Teddy de Melhor Longa-Metragem no Festival Internacional de Cinema de Berlim. A trama do filme gira em torno de Cheryl, que investiga a identidade de uma atriz negra creditada apenas como “A Mulher Melancia” em um filme da década de 1940. A narrativa aborda questões de racialidade e sexualidade, tanto para ela mesma quanto para Fae Richards, que descobre ser a mulher misteriosa.
But I’m a Cheerleader (ou Nunca Fui Santa, em português), de 1999, dirigido por Jamie Babbit, acompanha Megan, uma adolescente enviada para um acampamento de conversão após seus pais e amigos desconfiarem que ela é lésbica. Mesmo para Megan, essa afirmação parece um absurdo, mas aos poucos ela começa a entender o que a fazia se sentir tão diferente das outras garotas de sua idade. Comédia romântica camp, o filme conta com a participação de RuPaul no elenco e apresenta, de forma leve, a pressão que todas as pessoas queer enfrentam para que se adequem ao conceito de normalidade cisheteronormativo.
O cinema queer brasileiro
O cinema queer brasileiro acompanhou o movimento internacional e se consolidou a partir dos anos 2000, especialmente após 2010, com a criação de eventos como o Festival Mix Brasil e o Festival Internacional de Cinema LGBTQIAPN+. Em consonância com o conceito de queer estabelecido anteriormente, essas produções retratam pessoas dissidentes e marginalizadas e suas jornadas como integrantes de um sistema que raramente as acolhe, mas no qual elas resistem.
Madame Satã (2002), dirigido por Karim Aïnouz, é um longa franco-brasileiro que explora a vida de uma figura artística polêmica da vida marginal da Lapa, na primeira metade do século XX. O longa conta a história de uma artista que ficou conhecida pela alcunha de Madame Satã após vencer um concurso de fantasia no Teatro da República em 1938. O enredo acompanha o encontro do teatro com a ilegalidade, a violência e a tortuosa missão de tentar encontrar um lugar ao qual pertencer quando o mundo te rejeita tão agressivamente. O filme foi indicado a diversos prêmios nacionais e internacionais e se consagrou como um dos pertencentes ao novo cinema queer brasileiro.
Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), dirigido por Daniel Ribeiro, é uma versão estendida do curta nomeado Eu Não Quero Voltar Sozinho. O longa acompanha Leonardo, um aluno do ensino médio cego, que luta pela independência e navega pelos altos e baixos da vida de um adolescente. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho explora temas de autodescobrimento para pessoas queer, especialmente para aquelas que, por mais de um motivo, são colocadas à margem da sociedade. O filme venceu um FIPRESCI Prize (Melhor Filme da mostra Panorama) e um Teddy Awards (Melhor Filme com temática LGBT) do festival de Berlim. Além disso, o filme foi reconhecido por diversos outros festivais nacionais e internacionais.
Mãe só há uma (2016) é um filme escrito e dirigido por Anna Muylaert, mesma diretora do título Que Horas Ela Volta? (2015). No longa, Felipe descobre que foi roubado na maternidade e que agora terá que conviver em uma nova família. Mãe só há uma é um filme sobre maternidade, mas também sobre a jornada de autodescoberta de Felipe (ou Pierre, como é chamado posteriormente), quando se trata de explorar seu gênero e sua sexualidade; além do processo de aceitação em um núcleo familiar tão diferente daquele em que ele cresceu. A obra também arrecadou um Teddy Award no festival de Berlim, além de receber três indicações no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.
Sem coração (2023) é um filme da diretora alagoense Nara Normande, que retrata com sensibilidade a fase de transição entre a adolescência e a vida adulta. Inspirado nas próprias memórias da infância e adolescência da diretora, o longa acompanha o último verão de Tamara com os amigos antes de se mudar para Brasília para estudar. O filme se passa em 1996 e explora a relação entre Tamara e uma menina apelidada de Sem Coração. Em meio ao sentimento agridoce das despedidas, Tamara e seus amigos exploram os anseios e afetos da juventude mesmo em lugares — e tempos — onde não são aceitos. O filme foi reconhecido e premiado em diversos circuitos de cinema, nacionais e internacionais.
Referências
- BARROS, S. C. O CINEMA QUEER BRASILEIRO: O PENSAMENTO QUEER NO BRASIL A PARTIR DOS FILMES MADAME SATÃ E ELVIS & MADONA. Textos e Debates, [S. l.], v. 1, n. 29, 2016. DOI: 10.18227/2317-1448ted.v1i29.3199. Disponível em: https://revista.ufrr.br/textosedebates/article/view/3199. Acesso em: 5 ago. 2025.
- DENNISON, S. Cultura cinematográfica e identidades queer no Brasil contemporâneo. Cadernos Pagu, n. 60, 2020. DOI: 10.1590/18094449202000600005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/Y6Gt33DCGCmjJWMrw6h4jtb/. Acesso em: 5 ago. 2025.
- FURTADO, I. M. C. da G. New Queer Cinema – cinema, sexualidade e política, de Lucas Murari e Mateus Nagime. Cadernos de Gênero e Diversidade, [S. l.], v. 2, n. 1, 2016. DOI: 10.9771/cgd.v2i1.20442. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/cadgendiv/article/view/20442. Acesso em: 5 ago. 2025.
- Os mundos do cinema queer: da estética ao ativismo. ArtCultura, [S. l.], v. 17, n. 30, 2016. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/34814. Acesso em: 5 ago. 2025.
- ARAUJO, Tatiana. CINEMA QUEER: O QUE É ISSO, COMPANHEIR@S?. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero X, 2010, Florianópolis. Anais Eletrônicos, Florianópolis: Revista Estudos Feministas, 2010, p. 1-10.
Ficha técnica
Escrita: Camilly Silva
Leitura crítica: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Mariana Correa e Lívia Oliveira