A Masculinidade em ‘A Lenda do Cavaleiro Verde’

“Poder é uma fantasia” é a melhor forma de descrever a masculinidade em A lenda do cavaleiro verde (The Green Knight). Neste texto, falaremos mais sobre a releitura, lançada em 2021, do romance cavalheiresco Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, uma história escrita no século 14 por ume autore desconhecide, como parte dos contos do Rei Arthur.

A lenda do cavaleiro verde não é um filme fácil; nem é tão simples quanto uma história de aventura com um nobre herói e sua espada, tratando de insignificância, vulnerabilidade e muito mais. Sabendo-se disso, não é necessário conhecer a obra para compreender este texto.

Para entender a masculinidade em A lenda do cavaleiro verde, é importante frisar que durante aquele período cavalheiresco a masculinidade era baseada em três conceitos: A adoção do código de cavalaria, honrar a sexualidade masculina e mostrar coragem diante do perigo; e tais conceitos são reflexões tanto do personagens da história como da época em que viveram.

Utilizando-se do conceito de “The Uncanny” (Sigmund Freud, 1919), que, de forma resumida, busca caracterizar uma angústia provocada por algo estranhamente familiar, é possível explicar a angústia causada pela imposição da masculinidade da época sobre o protagonista, que acompanha o protagonista durante toda a história

No filme, quando o rei Arthur, tio de Gawain, o protagonista, pede a ele que conte uma história sobre si. Ao notar, e compartilhar com os outros cavaleiros lá presentes, que não tinha nenhuma grande história ou feito, o jovem tem a sua masculinidade provocada e ferida.

O Jogo

Após Gawain fazer sua confissão, a rainha Guinevere o questiona. “O que você vê?”, ela pergunta, apontando para os cavaleiros da távola. “Vejo lendas”, diz Gawain, e ela responde “Não tome seu lugar entre eles à toa”.

A passagem é importante porque todos os cavaleiros ali presentes, incluindo Arthur, são modelos de masculinidade. Cada um ali triunfou nos aspecto de cavalaria, sexo e coragem, trazendo para a realidade um questionamento importante: até onde sua masculinidade é sua?

Este questionamento provavelmente já passou pela cabeça de muitas pessoas. Num mundo onde o modelo de masculinidade segue valores, parâmetros e costumes diferentes, quão longe você precisa ir para provar que é masculino o suficiente? “Até onde a sua masculinidade é sua?”

Gawain, assim como muitos, é sufocado por parâmetros, muitas vezes inatingíveis, de masculinidade. Como um jovem inexperiente pode competir com o grande rei Arthur?

Ainda na cena, que se passava durante o Natal, uma figura grande, de aspectos largos e fortes, adentra o salão carregando um galho verde, simbolizando a paz. O cavaleiro verde. Tal cavaleiro, mesmo sendo uma árvore humanóide, apresenta o físico ideal masculino, o “estranhamente familiar” modelo masculino, que é criado pela mãe de Gawain, indicando que, de certa forma, até as mulheres conseguem ditar um modelo de masculinidade ideal, enquanto o homem vive em constante dúvida e questionamento sobre qual modelo seguir.

Naquele momento, o cavaleiro verde propõe um jogo: um cavaleiro deveria desferir um golpe nele, e, após um ano, receber o mesmo golpe no mesmo lugar em uma capela verde. Gawain aceita, buscando o reconhecimento de sua masculinidade. O cavaleiro verde não busca um duelo, pelo contrário ele se ajoelha perante Gawain esperando para receber o golpe.

É possível refletir nessa cena um paralelo direto com a violência e dominância masculina; há a expectativa de um duelo, no qual o vitorioso acertaria dominância sobre o perdedor, e a quebra de expectativa é refletida nas falas de Gawain, que chega a acreditar que é um truque do cavaleiro, ficando incrédulo e confuso, pois, acima de tudo, aquela era a chance dele acertar sua dominância de mostrar sua masculinidade.

A cena segue com Gawain pedindo que todes ali presenciem suas ações, reforçando mais ainda que tudo ali não passava de uma performance para ele — um tentativa de performar sua masculinidade. Por fim, o protagonista desfere um golpe, decapitando o cavaleiro verde, que logo em seguida se levanta, pegando sua cabeça e rumando à capela. Essa cena é a introdução de todo o conflito que o personagem enfrenta: sua necessidade de aprovação e a busca por honra.

Há, então, uma passagem de um ano, no qual o Rei Arthur incentiva Gawain a ir atrás do cavaleiro verde para cumprir sua parte do jogo — nesse ponto já sabemos o que espera Gawain nessa jornada, e o motivo dele hesitar em prosseguir com a mesma.

O Verde

De modo geral, o filme é extremamente simbólico, dando espaço para diversas interpretações, filosofias e conclusões; porém o verde é um símbolo chave para a história. Gawain passa toda sua jornada em uma luta contra as expectativas de cavalheirismo e masculinidade.

No início de sua jornada, ele recebe de sua mãe um cinto verde, que, de acordo com ela, protegerá ele de todos os males, mas logo no ínicio de sua jornada Gawain é roubado por um grupo de bandidos, tendo sua armadura, cavalo e cinto verde roubados, sendo deixado amarrado na floresta para morrer. Nessa parte, há o primeiro contato do espectador com o conceito de verde, no qual, em uma cena muito artística, a câmera sai de Gawain, mostrando um pouco o seu redor, e vemos o cenário mudando gradualmente, indicando a passagem do tempo, até a câmera voltar a Gawain, que agora não passa de um monte de ossos. O detalhe importante aqui é o verde ao seu redor, que ganha uma cor mais vibrante E, apesar do que parece, Gawain não morreu de fato, mas a cena era um vislumbre do futuro caso ele não se soltasse.

Eventualmente em sua jornada, Gawain chega a uma casa habitada por um senhor e uma senhora, onde o conceito de estranhamente familiar se apresenta com maior intensidade. Lá serão apresentados diversos conceitos; mas, dentre eles, é interessante trazer de volta o verde, que é apresentado pela senhora da casa, trazendo a cor como a vida que vem depois da morte. A importância desse conceito está ligada diretamente com a jornada de Gawain, que busca o cavaleiro verde para cumprir sua parte do acordo — o que resultaria em sua morte —, então o verde em si é o conceito catártico que indica a morte como um fim inevitável. Seja ao morrer pelas mãos do cavaleiro verde ou pelas mãos do tempo, de qualquer forma o verde vai estar lá. Ter isso em mente pode ser tanto um conforto para Gawain em sua jornada como uma forma de explicitar a insignificância de sua jornada.

Nessa mesma casa, a senhora exerce um papel importante — lembrando que o sexo é uma das bases da masculinidade na idade média, que é trabalhado de forma mais profunda no artigo “On Being a Male in the Middle Ages”, de Vern L. Bulloughera (1994) é essencial que homens fossem sexualmente ativos, pois seu órgão genital era o que os diferenciavam e colocavam como superior às mulheres (vale lembrar que era dever do homem manter sua parceira feliz e satisfeita e, caso ele não o fizesse, teria falhado como homem).

Assim, no filme, Gawain é tentado pela senhora, de forma que ela demonstra domínio sobre ele, pondo a masculinidade de Gawain em questão. Mais a frente, o personagem é beijado pelo senhor da casa, o que é um paralelo interessante. Nos dois casos ele é dominado, porém apenas com o senhor essa dominação tem um caráter mais passível, mais romântico — no livro, essas partes são trabalhadas com uma maior profundidade.    

Essel

A virgindade era uma característica extremamente valorizada nas damas da corte. Essel, personagem da história, não era virgem e, consequentemente, não podia ser uma dama da corte; Entretanto, ela era o interesse amoroso de Gawain.

Como anteriormente destacado, mesmo as mulheres podem determinar o modelo masculino ideal, e Essel é a personagem que melhor prova isso. Antes de o protagonista partir em sua jornada, ele e Essel conversam, de modo que a dama o propõe em casamento. A princípio, Gawain não responde, porque uma das características importantes dele é a indecisão e insegurança, que o leva a embarcar em sua jornada em busca de um modelo de masculinidade.

Essel é uma das primeiras personagens a tentar parar Gawain, tentando apontar o quão insignificante é sua jornada. Tendo o seguinte diálogo:

“É assim que homens tolos perecem”, Diz Essel.
“Ou como homens corajosos se tornam grandes?”, responde Gawain. 
“Por que grandeza? Por que a bondade não é suficiente?”, ela retruca.

Nesse simples diálogo, a mulher traz a maior questão acerca da masculinidade: por que toda essa luta para ser um grande homem? Por que ser bom não é o suficiente?

O Amarelo

Existem vários significados acerca do que cada cor significa. Porém, no enredo, o amarelo aparece como um símbolo de covardia, após deixar a casa o cenário assume um tom amarelo na floresta, no céu e nas águas, dando dicas do que virá a acontecer na capela. Eventualmente Gawain chega à capela verde, onde o cavaleiro verde o aguarda.

Após uma noite encarando o cavaleiro verde, ele finalmente desperta. Agora é o momento final, em que o cavaleiro verde se prepara para devolver o golpe. Gawain trava uma luta consigo mesmo. Honra; medo; dever; coragem; tudo isso passa em sua cabeça. Como prenunciado pela cor amarela, o jovem sucumbe em sua luta e foge do golpe do cavaleiro verde. Seu cavalo, antes roubado, surge na floresta, e ele, já em fuga, retorna para casa como um covarde.

Neste momento, Gawain já havia recuperado juntamente com o cavalo seu cinto verde— um símbolo de proteção para ele, que já se provou como falso, pois não o protegeu dos bandidos —, e, ao retornar à sua casa, ele se recusa a tirar o cinto.

Tendo concluído sua jornada, ele é reconhecido pelo já efêmero rei Arthur e, sendo o seu herdeiro do reino; após uma noite com Essel, Ele a engravida e não podendo casar-se com Essel, ele retira o filho de Essel, seu filho, para criá-lo com sua nova rainha.

O tempo passa, o filho de Gawain morre em batalha, e o reinado de Gawain termina em ruína. Essa é uma forma de demonstrar que mesmo tendo sido reconhecido por Arthur como um grande homem, suas ações e conduta são reflexo de seus atos na jornada, no qual Gawain deixa de forma implícita sua tendência ao mal. Isto é uma subversão dos valores, porque, mesmo Gawain sendo um “nobre cavaleiro”, suas ações cruéis o levam à ruína, o que o leva a tirar seu cinto verde, o símbolo que o “protegeu” até ali. 

Ao retirar o cinto, a cabeça de Gawain cai, mostrando que ele nunca escapou do golpe do cavaleiro verde. Neste ponto, o conceito de verde é representado pelo próprio cavaleiro verde, simbolizando a morte inevitável.

Contudo, não é assim que a história acaba. Todo esse futuro é mais uma peça pregada pela mente de Gawain; Em fato ele nunca fugiu do cavaleiro, mas estava lá, de joelhos, esperando o golpe. Nessa cena, é importante se atentar à expressão de Gawain, que passa de um olhar com pura confusão e medo para um olhar decidido e corajoso. Além disso, o cenário, antes amarelo, volta para sua cor original, deixando mais explícito que o desejo de fuga de Gawain se foi.

Antes do cavaleiro desferir o golpe, Gawain pede um tempo para retirar o símbolo de proteção, o cinto verde, deixando o protagonista totalmente vulnerável ao golpe. Neste momento, o cavaleiro verde passa a exercer um papel quase fraternal, no qual se ajoelha e demonstra orgulho de seu “filho”. A frase do cavaleiro apresenta uma ambiguidade, por isso, não posso traduzir. Após elogiar a bravura de Gawain, ele fala:

“And now, off with your head”

Este é o ponto final do filme, a frase pode significar tanto que o cavaleiro verde irá cortar fora a cabeça de Gawain, como pode significar para Gawain sair dali com sua cabeça. De qualquer forma, o filme se encerra, deixando o espectador com esta questão.

Uma conclusão

A masculinidade presente no filme remete ao cavalheirismo, sendo um conceito de masculinidade antigo, mas que ainda está vivo nos valores atuais de masculinidade. A chamada masculinidade tóxica é uma perversão distorcida desses valores ancestrais que conhecemos como arturianos.

No filme, Gawain é constantemente coagido a se tornar um cavaleiro, a buscar tais valores, de forma que ele tem dificuldade de tomar iniciativas sempre se questionando se está pronto para ser um cavaleiro. O filme trabalha com várias filosofias e simbolismos.

A ideia do verde, um conceito central da trama, é entender que ele não é a representação da morte em si, mas a vida que surge com a morte. Quase como uma forma de aceitar a morte, mas sem correr até ela.

Desenvolvendo um pouco mais sobre a masculinidade, podemos citar o cavalheirismo nos Estados Unidos da época da guerra civil e as tradições presentes em E o vento levou (1936), de homens falando sobre a honra das mulheres. É importante lembrar que essa ideia de masculinidade emergiu dos valores britânicos transportados para os Estados Unidos e outras colônias e continuam até hoje de uma forma hiper idealizada: “bons homens” são aqueles que defendem as mulheres, fornecem um lar e um sustento para a família e vão à igreja.

Tais ideais cavalheirescos parecem inocentes e bons na superfície. Porém em janeiro de 2019, um grupo de três homens, membros de uma milícia de direita, foram condenados a prisão por planejarem o assassinato em massa de muçulmanos em solo norte americano. Eles se autodenominavam “Os cruzados”. E neste embate de masculinidade do século 21, tudo o que é real e verdadeiro é destruído, até mesmo as porções boas de cavalheirismo.

É esta realidade que A lenda do cavaleiro verde nos mostra sobre a masculinidade; que essas virtudes são facilmente distorcidas. 

Bom, quando se analisa com base na realidade, é fácil ver os cavaleiros cavalheirescos como Dom Quixotes, atrapalhando-se e inclinando-se contra moinhos de ventos. Pra que se dar ao trabalho por um mero jogo moral?

Por fim, A jornada de Gawain é uma busca, não pelo cavaleiro verde, mas sim pela masculinidade, tendo a sua catarse no momento em que Gawain retira seu cinto verde, estando completamente vulnerável o que possibilita que ele alcance o seu propósito na jornada e libertando-se.