A Solidão Assexual

Por Yasmin Sandes

Essa é uma pauta que eu não vejo muito debate nas redes sociais, nem em lugar nenhum. Entretanto, é uma das inúmeras facetas dentro da realidade de pessoas assexuais. Isso nos atinge como um todo, porém, podemos reagir de diferentes maneiras a tal tópico. Esse texto foi redigido falando especificamente sobre pessoas assexuais, sendo estritas ou não, as quais não são arromânticas estritas.

É válido avisar que nem todos os assexuais necessariamente incomodam-se com o que chamo da ‘’solidão da pessoa assexual’’, assim como é válido afirmar que todos os argumentos foram embasados na minha própria experiência e naquilo que percebo ser constante dentro da comunidade ace, compilados em um texto para que possa ser compartilhado com outras pessoas que, talvez, se identifiquem. 

Em um mundo hiperssexualizado, cada vez mais pessoas vêm entrelaçando o amor ao sexo. São inúmeros posts, inúmeras falas que reforçam que os relacionamentos românticos apenas são válidos quando acompanhados de relações sexuais. Tal fato pode ser traduzido através dos constantes ‘tweets’ que insistem em perguntar: você namoraria uma pessoa assexual?

A assexualidade é um espectro formado por inúmeras micro identidades, que se relacionam de diferentes maneiras quanto ao quesito de atração sexual. Muitas dessas microidentidades podem sentir atração sexual parcial ou condicional, como é o exemplo de demissexuais, grayssexuais, etc. Outras podem simplesmente não sentir atração sexual, independente do contexto, e são conhecidas como assexuais estritos. São inúmeras vivências dentro do espectro assexual, tantas que eu nem conseguiria descrever de forma sucinta no presente texto. A assexualidade, no entanto, nada tem a ver com atrações românticas, de modo que as pessoas assexuais, caso sejam alloromânticas ou aros não-estritas, ainda podem sentir o desejo de firmar uma relação embasada em tudo aquilo que é definido como romântico. 

Todavia, três (3) causas principais corroboram para o que chama-se de ‘’solidão da pessoa assexual’’, a qual será discutida ao longo deste escrito.

A primeira causa é aquela que mais nos afeta como assexuais: a desinformação. Quantas vezes já não nos desgastamos tentando explicar com os mínimos detalhes o que é assexualidade, o modelo das atrações, o fato de que assexualidade e arromanticidade são coisas diferentes, além de outros diversos pormenores. A falta de uma discussão em amplo âmbito sobre a assexualidade é um dos principais motivos pelos quais somos invalidados e imersos em estereótipos que não fazem jus à realidade.

Quando falamos sobre assexualidade, um dos primeiros pensamentos que surgem na mente das pessoas, o que me inclui em outro momento de minha vida, é de que assexualidade é simplesmente não gostar de ninguém. A repulsa não apenas ao sexo, como também a qualquer pessoa, seja de maneira romântica, sexual ou sensorial, é um estigma forte na vida dos assexuais, que lutam todos os dias para desmistificá-lo. A desinformação, infelizmente, é espalhada por diversas mídias sociais, com explicações errôneas sobre a assexualidade e o que ela realmente representa. Mesmo grandes veículos de informação, considerados confiáveis, podem espalhar informações ditas como certas, as quais na verdade estão imersas em estereótipos. 

Por esse motivo, o primeiro desafio que uma pessoa assexual enfrenta é a solidão proporcionada pela desinformação. Quando falamos que somos assexuais, muitos indivíduos desistem de qualquer envolvimento romântico apenas porque acreditam, em seu místico idealizado, que a assexualidade é incompatível com romance e com tudo aquilo que envolve afeição. 

Assim, a solidão da pessoa assexual tem início do processo de afastamento do mundo, o qual não se aproxima por possuir uma visão completamente baseada em desinformação. 

A segunda causa da solidão de assexuais, corresponde a um simples fato:

As pessoas não se importam com assexuais. De maneira geral, esse tópico é muito mais visceral e evidencia a acefobia e hiperssexualização presentes na sociedade.

É indubitável que sexo, o qual antes era um tabu, hoje é falado com muito mais liberdade, de tal forma que as pessoas não se envergonham (e nem tem motivos para isso) de comentar abertamente sobre suas vidas sexuais e tudo aquilo que as envolvem. Entretanto, com o fim do tabu sobre o sexo, ele passou a representar uma relação de poder. A allosexualidade virou sinônimo de influência, assim sendo, aqueles que fazem sexo deliberadamente, dentro dos moldes da alloseexualidade, são aqueles socialmente aceitos e exaltados.

Nessa perspectiva, a hiperssexualização foi ganhando forma nas mídias sociais, influenciando a mais variada gama de pessoas e proporcionando fundamentos para uma realidade altamente exposta a tudo aquilo que envolve sexo. Presente em séries, filmes, livros, textos e em tudo o que imaginarmos, o sexo passou a ser representação da felicidade, de forma que os melhores momentos da vida são aqueles recheados de relações sexuais. Mesmo fora do ciclo dominante (CHAP), o sexo ainda assim é altamente debatido por absolutamente todas as camadas da sociedade, atingindo e modificando a vida de inúmeras pessoas. 

E é justamente nesse ambiente hiperssexualizado, onde o sexo se tornou regra, que aqueles que fazem parte da ‘’exceção’’ passam a ser maginalizados. Perceba-se que estou falando estritamente sobre relações de poder allosexuais-assexuais, não envolvendo debates acerca da dominância heterossexual que se refere ao sexo. 

Na autoafirmação explíticita: eu faço sexo e você não, os assexuais passam a ser vistos como ‘’quebrados’’, ‘’doentes’’, ‘’com problemas hormonais’’ e alvos de diversas outras falas acefóbicas que visam nos oprimir. Sexo passa a ser visto como um prêmio, algo tão estimado e tão cobiçado por todos no meio social. Desse modo, é derivante de tudo aquilo diferente e que causa estranhamento, que a opressão designada a pessoas assexuais constrói-se em seu caráter exclusionista.

Fruto da desinformação ou da crueldade, as pessoas não se importam com as pessoas assexuais, seus sentimentos ou vivências. Não procuram estudar sobre isso, pois aquilo não os atingem e é a partir do ‘’não’’ respondido à palavra transar que o processo de exclusão começa. Não há entendimento, não há conversa, não há debate. Para muitos, assexuais não passam de pessoas anormais, impossíveis de se integrarem totalmente à uma sociedade na qual o sexo é visto como prêmio, como meio de demonstrar o poder de uma pessoa sobre a outra.

Dessa forma, é através do negacionismo à nossa existência, das ameaças, do assédio, dos infortúnios e dos diversos outros meios de opressão que a existência de pessoas assexuais comprova-se, para os outros, um claro defeito, um desvio que pode facilmente ser consertado. E quando não se pode consertar o que, no mais tardar, descobrem que não tem conserto, a marginalização e o processo de exclusão passam a ser soluções viáveis: ignorar a existência para que essa não continue se perpetuando.

As pessoas, de forma generalizada, não se importam com assexuais.

Não a ponto de terem relações românticas com eles. Não a ponto de procurar estudar sobre eles, entendê-los, inseri-los abertamente na sociedade, sem dar margem à opressão ou ao exclusionismo.

Assexuais todos os dias são xingados, invalidados, ameaçados. E mesmo quando a opressão não vem de forma explícita, ela ainda está lá, nas entrelinhas. Há exemplos de pessoas que se afastam romanticamente quando descobrem que a outra é assexual: excluem seu número, bloqueiam nas redes sociais, ignoram quando passam por ela nas ruas. Tudo isso, todos esses pequenos atos fazem parte de uma acefobia, a qual, infelizmente, ainda é sustentada na sociedade através da opressão e exclusionismo, fundamentada na desinformação e no estranhamento. 

Toda essa gama de situações corroboram ainda mais para a solidão da pessoa assexual, a qual, em seu processo de marginalização e exclusionismo, é limitada à sua própria companhia, muitas vezes simplesmente para não enfrentar a opressão diária. Opressão essa que atinge a esfera não apenas virtual, mas também real.

A terceira causa da solidão da pessoa assexual não refere-se ao meio externo, e sim ao interno. Resultante dos diversos pontos já discutidos no presente escrito, as inseguranças de muitas pessoas assexuais dizem a respeito da própria assexualidade. Devido a opressão, a exclusão e aos diversos outros meios cruéis de nos apartar daquilo considerado ‘’normal’’, inúmeras pessoas pegam-se, constantemente, com a mesma pergunta em mente: eu sou merecedora de amor? 

É a partir do afeto que nos foi negado que constrói-se uma barreira entre nós e o mundo. E dessa vez eu não falo sobre a barreira construída com o propósito de opressão, e sim da barreira construída de modo a nos proteger dela. É a barreira construída por cada pessoa assexual, para respirar mais aliviado. É a partir dessa barreira que firmamos uma bolha ao nosso redor, a qual ao mesmo tempo, nos preserva e nos destrói. 

A insegurança, muitas vezes, impede que assexuais conheçam outras pessoas, no sentido de querer se envolver romanticamente, por medo de um script que eles já decoraram todas as linhas. A constância nos eventos, a regra até surgir a exceção, pode ser massacrante, de modo que a solidão consolida-se a cada vez que deixam de tentar por medo do fracasso.

Em um sistema onde relações sexuais são sinônimos de poder, o medo de continuar para sempre à sombra da rejeição e da exclusão impede de sequer tentar. Também é esse mesmo receio que fazem muitos assumirem uma vivência que não os pertence, forçando-se a ter relações sexuais para agradar o parceiro, para serem socialmente inseridos. A realidade pode ser cruel, em suas inúmeras formas. Quantos de nós já não nos imaginamos em uma realidade alternativa, onde tudo aquilo que somos é regra, e não exceção? Ou até mesmo uma realidade em que corresponderíamos ao padrão imposto da allonormatividade? 

Entretanto, se essas realidades existissem, de duas umas: ou seria uma utopia, ou não seríamos nós mesmos.

Assexuais não estão quebrados, não são doentes, não possuem disfunções hormonais. São pessoas, pessoas como quaisquer outras, as quais precisam lidar com muita coisa diariamente, inclusive com a opressão que visa atingir justamente a comunidade ace. A solidão que nos impõem é absurdamente cruel, pois nos faz desacreditar do mundo, nos faz desacreditar de nós mesmos. 

As redes sociais, todavia, como quase tudo nesse mundo, também possui seu lado bom: ela nos conecta com outras pessoas com experiências semelhantes às nossas, de modo a provar que não estamos sozinhos nesse mundo. De modo a provar que, independente do que aqueles que querem nos oprimir digam, nós somos, sim, dignos de amor e de afeto. E por quê não seríamos?¹ Reinventando-nos e reconstruindo-nos todos os dias, resistimos. Apesar da solidão imposta a pessoas assexuais, seja derivante de nossos medos ou do mundo, prosseguimos nessa realidade, sendo resistência a cada carinho trocado, a cada sorriso compartilhado e a cada certeza que forma-se em nossas mentes quando descobrimos que a vida é muito mais.

¹ Referência ao texto Adrenalina presente no livro ‘Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente: onde dorme o amor’.


Fontes: