O racismo, caracterizado pelo preconceito baseado em raça ou etnia, e a psicofobia, caracterizada pelo preconceito contra transtornos mentais, estão profundamente relacionados. Além da possível interseção entre pessoas negras (mais afetadas historicamente pelo racismo no Brasil) com transtornos mentais, que intensifica o preconceito sofrido pelo indivíduo, esses dois conceitos possuem relação histórica dentro da medicina, mais especificamente na psiquiatria, estando também presente na psicologia.
No final do século XIX, duas mudanças sociais ocorreram no Brasil: o fim da escravidão e o avanço da psiquiatria, atuante como mais um mecanismo de controle social. Nos manicômios, não eram internados apenas os considerados “loucos”, mas também todos os desviantes da norma, como criminosos e alcoólatras; essa norma, que é sempre definida culturalmente, forma o que se considera bom e ruim, saudável e doente, são e louco, etc. No ocidente, a norma é definida como um homem cis branco com certos comportamentos (muito baseados na moralidade cristã e posteriormente no positivismo). Tudo além disso passa muitas vezes a ser visto como “patológico”.
Nesse mesmo período, chegaram ao Brasil diversas teorias sobre a superioridade da raça branca, com diferentes perspectivas sobre como “tratar” um país afetado pela presença de pessoas tidas como inferiores e mais propensas a comportamentos indesejáveis. Acreditava-se que pessoas pretas eram naturalmente mais propensas ao alcoolismo, comportamentos violentos e moléstias mentais. No entanto, haviam divergências sobre pardos; alguns acreditavam que através da miscigenação poderia-se “branquear” o Brasil e evoluir o povo, e outros que a miscigenação aumentava a propensão aos transtornos e comportamentos patologizados da época. Assim, a psiquiatria do final do século XIX e início do século XX faz uma relação direta entre a negritude e os transtornos mentais, passando a institucionalizar e ter uma justificativa para a segregação destes indivíduos da sociedade.
Segue um trecho de “Cemitério dos Vivos”, fruto da vivência de Lima Barreto ao ser internado contra sua vontade no hospício Hospital Nacional dos Alienados:
“Esse pátio é a coisa mais horrível que se pode imaginar. Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí recolhidos, a imagem que se fica dele, é que tudo é negro. O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no nosso pensamento.” (p. 168)
De fato, negros eram os mais internados nos hospícios brasileiros. No Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em São Paulo, os negros representavam o dobro de internados comparado aos brancos, além de quefaleciam em proporções maiores. Esse cenário também estava presente no Asilo dos Alienados São João de Deus, em Salvador, Bahia.
Esses cenários ainda influenciam a sociedade brasileira nos dias atuais. Ainda se questiona a capacidade de autodeterminação e autonomia de pessoas negras, pobres e com transtornos mentais, através, por exemplo, da encarceração em massa de negros em presídios, com a justificativa de socioeducar, e em clínicas terapêuticas, com a justificativa de tratar, levando por fim à exclusão social desses grupos, sem ao menos questionar o quanto essa estrutura de preconceito e exclusão leva ao adoecimento psíquico dos mesmos.
Referências
- Soares, 2017. Raça e psiquiatria: uma análise genealógica da questão racial na psiquiatria brasileira. Revista de ciências sociais
- Meireles, 2021. Direito e loucura: um roteiro noir: uma breve análise do entrelace entre o racismo, a dependência química e a instituições jurídicas. Pantheon UFRJ
Ficha técnica
Escrita: Bibiana Christofari Hotta
Revisão: Viktor Bernardo Pinheiro e Ingredy Boldrine