Como a transfobia afeta pessoas racializadas?

Com base na compreensão da interseccionalidade, entende-se que o racismo não é a única opressão que acomete uma comunidade racializada — aquelas formadas por pessoas negras, indígenas, asiáticas ou marrons. A diversidade de identidades encontradas num grupo que se une a partir de uma mesma raça/etnia resulta em vivências de opressão diferenciadas e bastante específicas, como, por exemplo, no que diz respeito às pessoas trans racializadas.

Ainda que racismo e transfobia sejam opressões diferentes, seu entrelace submete suas vítimas a uma posição social em que são desprovidas de humanidades, tratadas como objetos e percebidas como repulsivas. Além disso, a constante marginalização imposta a elas, tanto por familiares e sociedade civil quanto pelo Estado, é o elemento central do seu genocídio sistemático promovido por toda uma nação.

A existência de pessoas trans racializadas é marcada por estatísticas ainda mais estarrecedoras se comparadas às dessas vivências isoladamente. Diante dos elaborados e cruéis mecanismos combinados do racismo e da transfobia, as pessoas trans racializadas estão sujeitas a precárias condições de saúde física e mental, não só pelas constantes discriminações e exclusões, mas também pela não incorporação de necessidades únicas nos serviços de saúde; aos mais subalternos empregos, chegando ao ponto de terem como única alternativa a prostituição; e à negação de direitos e da dignidade humana.

Por mais que as opressões se entrelacem, o mesmo pode não ocorrer com as respectivas pautas dentro dos movimentos sociais, de modo que as vivências multifacetadas de pessoas trans racializadas não recebem a visibilidade que merecem. Em consequência disso, a aceitação de suas identidades é dificultada em diferentes movimentos sociais, tornando-as excluídas até mesmo dentro das comunidades que deveriam acolhê-las. 

As maquinações da transfobia são tão complexas que podem atingir pessoas dentro dessas comunidades que não são trans. Isso se deve ao fato de que uma das bases fundantes tanto do racismo quanto da transfobia está em estabelecer um padrão de ser e de se manifestar no mundo, ligando à branquitude performances rígidas e bem estabelecidas de feminilidade e masculinidade. 

Desse modo, se qualquer expressão de gênero que esteja em desacordo com a cisnorma for percebida em mulheres e homens negros cis, estes sofrerão retaliação mesmo que não sejam, de fato, pessoas trans. A demonstração disso está nas notícias sobre o caso da atriz brasileira Veneza Francisca e de outras mulheres cis negras que, por terem traços que a sociedade associa comumente a homens — rosto, lábios, nariz e ombros largos —, são lidas como mulheres trans e, por isso, são agredidas em locais públicos.

A luta contra a transfobia e a reivindicação pelos direitos das pessoas trans precisa ser incorporada aos movimentos racializados, assim como a luta antirracista precisa fazer parte dos movimentos trans e LGBTQIA+; não somente porque atingem pessoas presentes nestes grupos, mas também pelo reconhecimento do modo como a interseccionalidade é empreendida sistematicamente para atingir estes e outros grupos, contribuindo para fortalecer a hegemonia dessas opressões.


Referências


Ficha técnica

Escrita:  Mell Martem
Leitura crítica: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Ingredy Boldrine e Brian Abelha