A literatura é uma das ferramentas mais poderosas para formar imaginários, transmitir valores e moldar a visão de mundo de sociedades inteiras. No Brasil, não é diferente — muitos dos chamados “clássicos” carregam não apenas as marcas de seu tempo, mas também o peso de ideologias discriminatórias e racistas. Obras como as de Monteiro Lobato foram celebradas por décadas (ou até mesmo séculos), mesmo retratando personagens negros de forma estereotipada e inferiorizada.
Logo, surge um dilema: esses livros devem continuar a serem lidos nas escolas? E, se sim, como fazer isso de modo responsável, consciente e crítico?
Partindo de um ponto de vista sócio-histórico, textos dessa natureza são registros importantes para a construção de debates étnico-raciais, pois exemplificam de maneira concreta como o racismo é um mal criminoso que está enraizado no cotidiano de diversas sociedades há séculos, principalmente a partir dos processos de colonização. Logo, a narrativa mais simples seria dizer: sim, esses livros devem ser lidos nas escolas, principalmente pelo peso que trazem, sendo artifícios úteis no combate ao negacionismo — sim, o racismo existiu. Existe. Está aqui.
Mas, quando se fala sobre a existência dessas literaturas dentro das salas de aula, é importante entender as complexidades que atravessam esse questionamento, porque, no fim das contas, não é tão simples quanto parece. Não basta “cancelar” tais histórias, nem banalizar a discussão em vídeos de trinta segundos nas redes sociais. Não é questão apenas de ensinar ou não, mas de compreender o peso dessa decisão e o que ela acarreta.
É impossível ignorar que a presença desses livros nas salas de aula também implica um impacto emocional e psicológico sobre crianças negras e racializadas. Quando a leitura é feita sem a mediação adequada, o contato precoce com representações estereotipadas pode reforçar sentimentos de inferioridade, vergonha e não pertencimento. Essas crianças, muitas vezes, se veem obrigadas a lidar com a violência simbólica de se reconhecerem nas páginas apenas como caricaturas, serviçais ou alvos de chacota — ao mesmo tempo em que colegas brancos consomem essas narrativas como “inofensivas” ou “ficcionais”.
Quando um professor apresenta um texto racista sem contextualizá-lo ou problematizá-lo, há o risco de naturalizar e perpetuar preconceitos, reforçando estereótipos ao invés de desconstruí-los. Nesse sentido, o questionamento central não é apenas se o livro deve ou não ser lido, mas de que forma, e em qual momento, essa leitura será conduzida, não existindo espaço para posturas acríticas nesse contexto.
A mediação adequada exige preparo, planejamento e, principalmente, compromisso ético. Não se trata apenas de explicar que “era assim naquela época”, mas também de expor por que era assim, quem se beneficiava disso e quais consequências ainda são sentidas hoje.
Em uma tentativa de contornar a situação, várias obras de Monteiro Lobato tiveram versões censuradas, excluindo os conteúdos de cunho racista e discriminatório que foram originalmente escritos pelo autor. Sua bisneta, Cleo Monteiro Lobato, relançou o clássico A Menina do Narizinho Arrebitado, por exemplo, sem os trechos estereotipados e preconceituosos. Embora a mudança tenha sido bem-recebida por uma parte do público, a discussão acerca do apagamento dessas discriminações também deve existir, tendo em vista que simplesmente colocar esses acontecimentos debaixo do tapete é, de certa forma, propagar que o racismo não estava presente, que nunca existiu.
Também é necessário repensar o espaço que essas obras ocupam no currículo pedagógico. Dar a elas lugar exclusivo ou predominante significa, na prática, silenciar outras vozes: de autores negros, indígenas e de tantas outras perspectivas que foram sistematicamente excluídas. A pluralidade literária não é só uma questão de diversidade, mas um direito; é garantir que todes ês estudantes possam se reconhecer nas histórias que leem, não apenas como figurantes ou estereótipos, mas como protagonistas complexos e dignos.A questão não é, portanto, sobre cancelar ou proteger um autor, mas sobre o que é feito com essas histórias hoje. Ler um clássico com conteúdo racista sem criticá-lo é repetir o erro. Encará-lo de frente, em contexto e debate, é transformar um símbolo de opressão em uma ferramenta de consciência, mas deve ser feito com sensibilidade em relação ao público que recebe o conteúdo, em especial às crianças. A escolha está em como contar — e recontar — essas narrativas, pois o que realmente forma gerações não é só o que elas leem, mas como aprendem a enxergar o mundo a partir dessas leituras.
Referências
- O valor da literatura negra na educação antirracista;
- Devemos editar os termos racistas nas obras de Monteiro Lobato?;
- Tolerância nota zero: o chocante retrato do racismo nas escolas;
- Monteiro Lobato racista? Entenda por que ‘cancelamento’ do autor virou tema de debate na Unicamp.
Ficha técnica
Escrita: Nunu Pítaro
Leitura crítica: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Luiza Araujo e Mariana Correa