O direito à readequação de nome e gênero para pessoas trans

Em uma sociedade na qual o binarismo de gênero é a norma, pessoas transgênero e não-binárias lutam, dia após dia, por reconhecimento, respeito e dignidade. Atualmente, as discussões acerca da readequação de nome e gênero nos documentos têm ganhado mais força e visibilidade.

Mas você sabia que nem sempre foi assim?

A linha do tempo que percorre essa luta é longa, inconstante e, historicamente falando, prematura. Ao redor do mundo, os avanços ocorrem de formas distintas — e, na maioria dos países, a conquista do direito à readequação de nome e gênero não encerra a necessidade de continuar a militância, visto que estes quase sempre vêm acompanhados de violência, principalmente institucionais. 

A fim de exemplificação, que tal conferir essa cronologia que representa a resistência, resiliência e força da comunidade trans?

Os primeiros passos da legalização

A Suécia foi pioneira no que diz respeito à legalização da readequação. Em 1972, ainda no século XX, o país aprovou a lei que autorizava pessoas maiores de dezoito anos a realizarem transição física e legal de gênero — “Lag (1972:119) om fastställande av könstillhörighet i vissa fall”, ou, em tradução livre, “Lei (1972:119) sobre a determinação do gênero em certos casos”.

Apesar do avanço histórico e significativo, ainda havia muitos fatores que desumanizavam a identidade e a existência de pessoas trans. Entre eles, se destacavam:

  • Obrigatoriedade da esterilização definitiva: O direito da autonomia e individualidade de pessoas trans era retirado, visto que não poderiam ter filhos biológicos no futuro, caso essa fosse sua vontade. Esse requisito pode — e deve — ser encarado como inconstitucional e eugênico.
  • Exigência de diagnóstico psiquiátrico: Para que a readequação acontecesse, era necessária a existência de um diagnóstico psiquiátrico — chamado “transtorno de identidade de gênero”. Essa exigência comprova e evidencia a forma  que a transgeneridade era vista e tratada como uma patologia; pensamento que ocorre até hoje, mais de cinquenta anos depois. 
  • Imposição de procedimentos cirúrgicos: A cirurgia de redesignação sexual era outra demanda imposta para a obtenção da readequação oficial e legal. Mais uma vez, corpos trans eram violados e tidos como impróprios. Pessoas trans que não desejassem ou não pudessem realizar o procedimento deveriam escolher a própria identidade ou integridade física — o que causava grande sofrimento emocional e psicológico. 

Na época, a resistência trans não tinha tanta visibilidade — na verdade, era difícil que suas vozes fossem ouvidas, mesmo que estivessem ali. Muitas delas acreditavam que aquela era a única maneira viável de serem reconhecidas legalmente; de terem suas existências validadas. Então, se submetiam àquilo que lhes era imposto. 

Porém, poucas décadas depois, o ativismo começou a ganhar ainda mais força. Na década de 90 e nos anos 2000, organizações como a Federação Sueca para os Direitos LGBTQIA+ (RFSL) começaram a denunciar abertamente a postura do Estado sueco. 

Uma figura muito importante nessa luta foi a atriz e ativista Aleksa Lundberg. Ela usou sua intimidade com a arte para denunciar a quebra de direitos humanos e exigências absurdas feitas pelo Estado sueco acerca da existência de pessoas trans — medidas essas que também a atingiram pessoalmente, sendo uma mulher trans. 

Na imagem, há uma mulher de cabelos curtos e loiros, pele branca e batom vermelho. Ela está vestindo uma blusa azul florida e calça preta. Ela segura nas mãos um pequeno ramo de flores. Atrás dela, há um telão opaco com a imagem de um homem. Ao seu lado, há uma pequena mesa bege, contendo um notebook e uma bandeira arco-íris, representando a comunidade LGBTQIAPN+, pendurada em um pequeno suporte.
Aleksa Lundberg

Aleksa organizou e realizou uma peça teatral intitulada Flytta på er – jag ska bli fri, ou, em tradução livre, Saiam da frente — eu vou ser livre. A atriz utilizou desse espaço para representar sua trajetória como uma mulher trans, da infância à idade adulta. Muitos de seus relatos foram feitos em modelo de protesto e denúncia contra as práticas e leis suecas direcionadas às pessoas transgêneras. 

A pressão que a repercussão da peça de Aleksa causou, somado ao ativismo potente de outros militantes da comunidade LGBTQIAPN+, foi fundamental para a disseminação da desumanização que a comunidade sofria perante ao Estado sueco — tornando transparentes as violações dos direitos humanos cometidas.

Em 2018, o governo sueco aprovou um pedido de indenização, calculado em 225 mil coroas suecas — aproximadamente 130 mil reais — para cada pessoa que foi esterilizada compulsoriamente nesse processo. 

A legalização na América Latina

A Argentina foi o primeiro país latino-americano a legalizar a readequação de nome e gênero. Em 2012, foi sancionada a Lei de Identidade de Gênero (Lei n° 26.743) — resultado de décadas de ativismo promovido por organizações como a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros da Argentina (ATTTA) e Associação de Luta pela Identidade Travesti e Transexual (ALITT). 

Essas organizações criaram o que ficou conhecido como Frente Nacional pela Lei de Identidade de Gênero, pressionando o Congresso e o Executivo para a obtenção de seus direitos básicos — o reconhecimento digno. 

A imagem é composta por um grupo plural de manifestantes, em uma rua urbana iluminada por postes, no meio da noite. Em conjunto, ês manifestantes seguram uma grande faixa branca, com os dizeres "Frente Nacional Por La Ley de Identidad de Género", escrito à mão. Ês manifestantes estão sorrindo para a foto, demonstrando um momento de união e força coletiva. A foto é colorida em tons de sépia, trazendo uma sensação histórica para o visual.
Frente Nacional pela Lei de Identidade de Gênero

Outro fator que também se mostrou favorável a essa conquista foi o contexto político: a Argentina já havia tornado legal o casamento LGBTQIAPN+, em 2010, pelo governo progressista de Cristina Fernández de Kirchner. 

A Lei Nacional de Identidade de Gênero, até hoje, é considerada histórica e um marco global na luta LGBTQIAPN+, especificamente na luta transgênera. Diferentemente à lei sueca, que exigia cirurgias, diagnóstico médico e maioridade, a lei argentina trabalha na autodeclaração. Ou seja, qualquer pessoa que não se identifique com o gênero que lhe foi imposto ao nascer pode solicitar alterações de nome, imagem e gênero em seus respectivos documentos oficiais a partir de procedimentos administrativos simples e gratuitos — inclusive menores de idade, perante consentimento dos pais.

Mesmo diante de avanços históricos, atualmente o país sulamericano enfrenta retaliações ante os direitos conquistados após décadas de luta e militância constantes. Eleito em 2023, o atual presidente Javier Milei, de extrema-direita, realizou retrocessos significativos: intencionou eliminar leis de paridade de gênero e firmou um decreto que proíbe assistência médica para transição de gênero em menores de dezoito anos. 

Hoje, a expectativa de vida de pessoas trans, na Argentina, não ultrapassa os 35 anos. 

A legalização no Brasil 

O processo da legalização de readequação de nome e gênero no Brasil seguiu um padrão parecido com o realizado na Suécia durante o século XX. Até 2018, pessoas trans só poderiam e conseguiriam dar início ao processo de readequação se:

  • Provassem ser trans através de laudos médicos e diagnósticos oficiais;
  • Na maioria dos casos, eram induzidas e obrigadas a realizarem cirurgias de redesignação sexual.

Mais uma vez, o cenário mostrava pessoas trans sendo desumanizadas e patologizadas — literalmente, pois, até 2019, a transgeneridade era classificada como Transtorno de Identidade de Gênero (CID 10, F64 — na antiga configuração do DSM-5) no Brasil. É algo assustadoramente recente e que perpetua consequências até os dias de hoje, visto que, mesmo não sendo mais considerada oficialmente um transtorno, marcou a existência trans no imaginário popular como uma doença; um carimbo que será difícil de apagar. 

Em março de 2018, o STF reconheceu as exigências estabelecidas como inconstitucionais, revogando de maneira imediata e em todo o território nacional as imposições anteriores. Essa ação foi baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, direito à identidade e igualdade. 

Com isso, pessoas trans passaram a ter direito à readequação de nome e gênero diretamente no cartório, anulando a expectativa de cirurgia, processo judicial ou laudo médico. 

Essa conquista, claro, não caiu do céu. Ela foi fruto de uma resistência em massa que se iniciou através de organizações ativistas pelos direitos LGBTQIAPN+ e transgêneros.

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) teve um papel central em todo esse percurso. Estruturando métodos, relatórios, pesquisas e organizando mutirões de retificação, a organização pressionou defensorias e regimes cartoriais para a obtenção de um direito que é básico para a maioria das pessoas, mas que se mostra completamente desigual quando o olhar é voltado à comunidade trans — o direito pleno de existência enquanto se exerce a própria identidade. 

Apesar desses avanços, o Brasil continua registrando casos de tratamento psiquiátrico, exigência de laudos médicos e acompanhamento desnecessário para a realização desse direito — mostrando que, mesmo com as conquistas, a lei ainda não alcança parte da população, especialmente a porcentagem periférica e rural; além da necessidade de continuar lutando, persistindo e pressionando instituições públicas para a manutenção e disseminação do direito. 

A transgeneridade e a readequação ao redor do mundo

A luta trans não se baseia apenas no eixo América-Europa; até porque a transgeneridade não se restringe a localizações ou regiões específicas, estando presente em diversas culturas, classes sociais e etnias. 

Na maioria dos países do continente africano, por exemplo, a existência e garantia do direito de reconhecimento legal e digno perante à autodeclaração de gênero é, infelizmente, muito limitada ou inexistente. Apesar disso, alguns deles têm feito pequenos — e lentos — avanços perante à conquista. 

Na África do Sul, a Lei de Alteração de Descrição de Sexo e Status Sexual permite, desde 2003, que pessoas trans modifiquem a área de gênero em seus documentos oficiais.

Em contraponto a isso, países como Egito, Tunísia e Líbano ainda sofrem com a falta de direitos e garantias dignas de existência, não sendo reconhecidos em suas próprias identidades de gênero — o que acaba aumentando a vulnerabilidade desses grupos a violências, discriminações e distintas formas de abuso, visto que não possuem proteção legal. 

Já no continente asiático, a amplitude de reconhecimentos e direitos garantidos por lei é bem grande, principalmente quando o assunto é a readequação legal de nome e gênero — proporcionando níveis de progressão não lineares em seu território. 

No Japão, a exigência da esterilização para o processo legal de readequação só foi abolida em 2023 — uma conquista também muito recente. Por outro lado, mesmo avançando nesse quesito, o país ainda impõe que, para que a alteração seja feita, ê solicitante precisa ser solteire e sem filhes. 

Em lugares como a Nova Zelândia, no entanto, as leis parecem estar avançando de maneira positiva. Desde 2023, a autodeclaração é aceita para realizar processos como a alteração do marcador de gênero nas certidões de nascimento, ignorando a imposição antiquada e inconstitucional de burocracias violentas e psicologicamente desgastantes para pessoas trans. 

Os avanços do gênero neutro ao redor do mundo

A discussão que permeia os direitos pela identidade do gênero neutro tem ganhado mais visibilidade nos últimos anos. Mesmo sendo um tópico ainda polêmico para muitas pessoas, é uma luta que precisa ser reconhecida e validada — e tudo começa com a quebra de conceitos binaristas que ainda insistem em padronizar e catalogar vidas e existências em “caixinhas” pré-definidas. 

Países como a Dinamarca, Alemanha e Islândia já reconhecem e permitem a readequação de gênero para “neutro”, proporcionando chances dignas de existência e promovendo a área de direitos humanos para a comunidade não-binária. 

Na Ásia, o Paquistão reconhece identidades neutras legalmente desde 2023. 

Agora, sobre o Brasil, recentemente o país alcançou um marco histórico — em 07 de maio 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, por unanimidade, que o marcador de gênero neutro estivesse presente no registro civil de pessoas não-binárias. 

Embora a decisão não esteja explicitamente presente na legislação brasileira, essa aprovação garante, de certa forma, que não haja distinção entre os direitos de pessoas trans binárias e não-binárias, já que a alteração de gênero para pessoas trans que se autodeclaram femininas ou masculinas é permitida desde 2018. 

Apesar de legalizado, a discussão que transcorre a real implementação desses direitos no dia-a-dia de pessoas não-binárias precisa atingir maiores proporções e alcançar ainda mais ouvidos. Porque, na realidade, o que acontece não é a garantia de igualdade e inclusão — suas identidades são invisibilizadas e desrespeitadas a partir do momento em que não são incluídas em processos cotidianos simples. O preenchimento da área de gênero em formulários é um exemplo — na maioria das vezes, se apresentando binaristas e excludentes. 

A luta daqui para frente

Com esses fatos históricos postos sobre a mesa, é possível perceber que, mesmo com todos os avanços, a caminhada não é uniforme e nem constante. Muitos retrocessos acontecem durante o percurso para o reconhecimento e a dignidade; e, daí, a importância de dar poder àqueles que também lutam pela causa — e escolher com sabedoria quem construirá a ponte entre a comunidade e os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. 

Mais do que nunca, é necessário continuar a luta, a resistência e a busca por cada vez mais direitos. Só assim a igualdade poderá ser alcançada — ou, pelo menos, algo próximo a ela.


Referências


Ficha técnica

Escrita: Nunu Pítaro
Leitura crítica: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Brian Abelha e Mariana Correa