A existência de padrões, normas e normatividades que subjugam e oprimem a comunidade LGBTQIA+ é uma realidade incontestável. Por abranger diferentes dissidências relacionadas à orientação sexual, identidade de gênero, sexo biológico e orientação romântica, algumas dessas normatividades são mais conhecidas e pronunciadas do que outras. Porém, uma que deveria receber ainda mais atenção é a que atinge o espectro arromântico que integra a comunidade.
O espectro arromântico compreende pessoas que sentem atração romântica, isto é, vontade de se relacionar romanticamente com alguém, de modo parcial, condicional ou nulo. As manifestações específicas da atração romântica não significam que pessoas arromânticas não possam sentir amor, estar em relacionamentos ou ir em busca deles.
Contudo, a amatonormatividade, a principal e mais destrutiva norma a qual esse grupo está submetido, ao posicionar o amor romântico no centro da vida das pessoas, sendo ele não somente aquilo que todas elas buscam e almejam, mas também o que valida uma relação, colocando-a acima de qualquer outra em termos de importância, torna inconcebível a mera possibilidade de existir relações em que as pessoas não o sintam ou o queiram.
Através das mídias audiovisuais, da indústria musical, da literatura e de outros elementos culturais, a amatonormatividade induz na sociedade, desde muito cedo, a concepção de que a máxima e plena felicidade apenas será encontrada num relacionamento romântico. Tais pressuposições são prejudiciais para todas as pessoas e relações, porém os danos que ela causa em pessoas dentro do espectro arromântico são ainda mais cruéis e profundos.
A concepção de que aspectos românticos são naturais e próprios de toda e qualquer relação humana foi construída e consolidada ao longo do tempo sobre diversos pilares, incluindo a linguagem. É inevitável: o léxico dos relacionamentos é extremamente amatonormativo!
Ao enunciar as palavras “amor”, “namoro” e “relacionamento”, mesmo que não seja mencionada, a natureza romântica é assumida. Ainda que estas palavras pudessem se referir a vivências de pessoas da comunidade arromântica e, por isso, dissociadas de sentimentos românticos, a leitura dessas vivências feita pela sociedade colocariam-nas como exemplos de experiências românticas típicas.
Expectativas e padrões românticos estão enraizados nas palavras usadas para descrever sentimentos, formas de se relacionar e as pessoas que se relacionam. A linguagem não só produz normatividades, mas também contribui para reiterá-las e infundir no imaginário coletivo uma associação quase inseparável entre romance e relacionamentos. A linguagem traz a pressuposição da presença do romance, de sentimentos românticos e da conexão obrigatoriamente romântica nas relações entre as pessoas antes mesmo que elas possam pronunciar uma única palavra sobre seu próprio relacionamento!
Num mundo em que o lobby romântico é hegemônico e influencia a leitura que as pessoas fazem das relações humanas, pode ser extremamente desafiante e exaustivo para pessoas arromânticas, estando ou não em relacionamentos, compartilhar suas vivências e experiências. Infelizmente, elas precisam lidar com estereótipos nocivos sobre si e suas vidas, a desvalorização dos seus relacionamentos pelas concepções amatonormativas das pessoas, além de lutar contra a invisibilização e invalidação de sua identidade e das relações em que estão envolvidas, ocasionadas pela linguagem.
Porém, da mesma forma que a linguagem é usada para fortalecer padrões destrutivos, ela também pode ser uma aliada no combate a esses. Formas mais abrangentes e inclusivas para se referir às relações humanas não-românticas, no geral, podem ser desenvolvidas, como por exemplo os termos “relação queerplatônica”, utilizado para descrever relações predominantes na comunidade arromântica, em que existe uma forte conexão entre as pessoas envolvidas, maior que uma amizade, e que não necessariamente envolve atração romântica e/ou sexual, e o termo “parceria de vida platônica”, usado para tratar de um relacionamento, sem necessariamente ter sexo ou romance, entre pessoas que unem suas vidas, podendo ou não se casar, e compartilham intimidade.
Outra forma que a linguagem pode contribuir para a desconstrução das normas culturais e sociais que regem as relações interpessoais é através do rompimento com as percepções e leituras confinantes implícitas nos termos associados aos relacionamentos, que perpassa compreender que o romance não é o aspecto mais importante para definir o valor e o peso de uma relação na vida de alguém, que existem diversas formas de amar e ser amade e de se relacionar para além do amor e do relacionamento românticos e que todas as relações e conexões, seja qual for sua natureza, são indispensáveis para o alcance da felicidade e da plenitude.
Referências
- The Amatonormativity in Romance-Coded Language | Nothing Radical
- Amatonormativity, Aromanticism, and What Defines a Relationship | Bridgewater State University
- Arromanticidade | LGBTQ Spacey
- Hierarchy of Love | University of Colorado Boulder
- O que é uma relação arromântica | Badoo Blog
- As parcerias platônicas que unem pares ‘até que a morte os separe’ | BBC News Brasil
Ficha técnica
Escrita: Mell Martem
Revisão: Lara Moreno e Brian Abelha