Quem foi Dona Ivone Lara

Yvonne Lara da Costa foi a primeira filha de um casal formado por Emerentina Bento da Silva, que era costureira e cantora, e João da Silva Lara, violinista e participante do desfile do Bloco dos Africanos. Ela nasceu em 13 de abril de 1922, época em que se defendia o embranquecimento cultural através da mestiçagem como forma de apagar a população racializada da sociedade e, portanto, de todo o cenário da arte, inclusive da música. 

Foto em preto e branco de Dona Ivone Lara, uma mulher negra e gorda, com o cabelo preto curto e meio ondulado, sorrindo enquanto olha para o lado. Ela aparenta ter de 40 a 50 anos.
Dona Ivone Lara

No fim da adolescência, ingressou na faculdade de enfermagem na atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Para dar prosseguimento à sua carreira, iniciou o curso de Visitadora Social, que mais tarde veio a chamar-se Serviço Social. Desse modo, ela foi uma das primeiras mulheres negras a se formar em um curso superior no Brasil e, em 1947, aos 26 anos, uma das primeiras assistentes sociais. Enquanto assistente social, passou toda a sua carreira no Centro Psiquiátrico Nacional D. Pedro II — o Instituto de Psiquiatria, mais tarde denominado Instituto Nise da Silveira —, onde se especializou em Terapia Ocupacional e passou a trabalhar no Serviço Nacional de Doenças Mentais.

Ivone viajava quilômetros em busca dos parentes de seus pacientes, visando resgatar os vínculos perdidos após a submissão — ou pode-se dizer abandono — nos hospitais psiquiátricos. Junto de Nise da Silveira, que é conhecida por revolucionar o tratamento mental no Brasil e por seu grande papel na luta antimanicomial na década de 70, ela foi responsável por instaurar a terapia musical como um dos tratamentos no Instituto, arranjando patrocínios para os instrumentos e para a criação da oficina de música, que posteriormente tornou-se o bloco “Loucura Suburbana”. Também criaram eventos internos de apresentação, nos quais os pacientes apresentavam-se com músicas e danças. Ela aposentou-se da carreira na saúde em 1977, após 39 anos na enfermagem e na assistência social, para dedicar-se à música.

O contato de Ivone com a música deu-se início ainda na infância, influenciada pelos pais, ainda que seu pai tenha falecido quando ela tinha 3 anos. Aos 10, ingressou no colégio interno Orsina da Fonseca, onde teve aulas de música e, devido ao seu talento, foi indicada para o Orfeão dos Apiacás, da Rádio Tupi. Sua primeira composição surgiu aos 12 anos, em 1934, e foi produzida com dois de seus parentes: Mestre Fuleiro e Hélio dos Santos. A música foi denominada Tié, Tié e inspirada tanto na ave chamada Tié quanto na expressão oialá-oxa, utilizada por sua avó moçambicana para reprimi-la ao fazer algo de errado. 

Aos 17 anos, após o falecimento de sua mãe, ela foi morar com seu tio Dionísio, quem a ensinou a tocar cavaquinho. Depois de formar-se na UNIRIO, aproveitava as folgas do trabalho para participar das rodas de choro — encontros de músicos com o intuito de tocar no improviso, sem ensaios ou arranjos — organizadas na casa do tio e programava suas férias para o Carnaval, visando participar dos desfiles. 

Em 1947, compôs a canção Nasci para Sofrer, utilizada no desfile da escola de samba Prazer da Serrinha, a qual frequentou por um tempo. Após isso, passou para a Império Serrano, na qual desfilava na ala das baianas. Em uma época tomada pelo machismo, acredita-se que a sambista chegou a assinar algumas de suas obras com o nome dos primos, para que as músicas pudessem ser tocadas nos desfiles. No entanto, em 1965, tornou-se a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores da escola de samba com Os Cinco Bailes da História do Rio, samba-enredo que comemora os 400 anos da cidade.

Em 1970, ela adotou o nome artístico “Dona Ivone Lara”, e na mesma época tornou-se famosa para além do mundo carnavalesco. Participou de rodas de samba no Teatro Opinião, em Copacabana, e de diversos programas de televisão, como o Programa do Chacrinha. Também participou de gravações, apresentando, por exemplo, as canções Agradeço a Deus e Sem Cavaco Não no disco Sargentelli e O Sambão. Sua primeira apresentação solo foi em 1974 e lançou seu primeiro LP em 1978, denominado Samba, Minha Verdade, Samba, Minha Raiz.

Muitas das composições da artista traziam a herança africana. Na década de 80, viajou em turnê para a Angola. Ela relatou que sentiu uma imensa conexão ao descer do avião, como se aquele fosse não apenas um lugar que ela já conhecia — embora ela nunca tivesse ido lá —, mas sua casa, e que teve vontade de chorar. Lá foi reconhecida, algo que não esperava, e a denominaram “Mãe de Angola”. Em 1985, apresentou-se na Europa, na América do Norte e na Ásia para divulgar o LP Ivone Lara.

Em 2012, a escola de samba Império Serrano resolveu homenageá-la com o enredo Dona Ivone Lara: O enredo do meu samba. Também já foi homenageada na 21° edição do Prêmio da Música Brasileira, em 2010, e na 19° edição do Trem do Samba, em 2014. Em 2015, a 24ª Ocupação Itaú Cultural inaugurou uma exposição em homenagem à artista, contando com reprodução de seus LPs, depoimentos, objetos pessoais e mais. Em 2016, recebeu a Ordem do Mérito Cultural, ordem honorífica nacional que tem como objetivo reconhecer as contribuições à cultura brasileira. 

A sambista faleceu em abril de 2018, aos 96 anos, após uma parada cardiorrespiratória, mas seu legado continua vivo e enraizado na cultura brasileira, seja na música, seja nos direitos às pessoas com transtornos psicológicos.


Referências


Ficha técnica

Escrita: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Lara Moreno e Ingredy Boldrine