Pessoas trans têm vantagem nos esportes?

De tempos em tempos, ressuscita-se a discussão acerca da presença de pessoas trans nos esportes, em especial relacionado a mulheres trans competindo diretamente com mulheres cis. O motivo do debate é o suposto privilégio carregado por essas mulheres, que teriam um “corpo masculino” e, por isso, uma vantagem contra mulheres cis.

Apesar do interesse no debate, especialmente por pessoas que são contra a participação de pessoas trans em times e campeonatos, as pesquisas não apresentam igual ânsia por essa diferença, de modo que é raro encontrar estudos voltados especificamente para as mudanças corporais em pessoas trans e como elas afetam a prática esportiva.

Pessoas transfemininas realmente apresentam uma vantagem?

O pesquisador Leonardo Alvares, professor da Faculdade de Medicina do Centro Universitário São Camilo, juntamente com sua equipe, coordenou algumas pesquisas comparando a capacidade atlética de mulheres trans, mulheres cis e homens cis, paraavaliar se existe, realmente, alguma vantagem por parte de corpos transfemininos. 

Um dos estudos, denominado Análise comparativa das adaptações fisiológicas ao esforço físico em mulheres transgênero em terapia estrogênica de longa duração e em mulheres e homens cisgêneros, foi sua tese de doutorado, publicada em 2022. O estudo busca avaliar a capacidade aeróbica cardiopulmonar e a força muscular de pessoas transfemininas que estão em hormonização há cerca de 14 anos e, de forma resumida, a conclusão foi que, apesar da capacidade atlética de mulheres trans não se igualar à de mulheres cis, ela é perceptivelmente inferior à capacidade atlética de homens cis (no que diz respeito às categorias avaliadas, que já foram mencionadas). 

Outro de seus estudos é denominado Análise de atletas transfemininas amadoras sob terapia estrogênica (título original: Analysis Of Transgender Women Amateur Athletes Undergoing Gender-affirming Hormone Therapy). Este estudo, publicado em 2023, concluiu que mulheres trans e mulheres cis, em condições de treino frequente e similar, não apresentam diferença na força e na respiração (consumo de oxigênio) e possuem índices de massa muscular semelhante. Além disso, os dados apontam que o músculo cardíaco de ambos os grupos possui a mesma espessura. 

Em 2021, o Centro Canadense de Ética no Esporte (Canadian Center for Ethics in Sport, CCES) publicou o estudo Atletas transfemininas e o esporte de elite: uma revisão científica (em inglês: Transgender women athletes and elite sport: a scientific review), que revisa estudos científicos sobre a participação de atletas trans no esporte competitivo. Na discussão, conclui-se que não há, realmente, estudos suficientes acerca das capacidades transfemininas no esporte, e que nem todas as diferenças implicam, necessariamente, em uma vantagem ou uma desvantagem. Sempre será relevante determinar quais são as exigências do esporte específico. Além disso, o hormônio utilizado, a frequência e a forma de aplicação também podem acarretar em diferenças entre as próprias mulheres trans. 

Outra questão levantada é que, apesar de isso não ser facilmente percebido devido à divisão entre os esportes feminino e masculino, as mulheres cis atletas frequentemente superam homens cis atletas em diversos atributos, como em resistência, recuperação, equilíbrio e afins. Levando isso em consideração, a revisão encerra ao analisar o fator social, isto é, o sistema sociocultural que cria e reforça a transmisoginia, evidenciando  como o medo de mulheres transgênero nos esportes femininos é infundado e declarando ainda que o verdadeiro inimigo das mulheres (sejam elas cis ou trans) nos esportes é a falta de financiamento, a desigualdade e as poucas (quase nulas) oportunidades que estas recebem, em especial em posição de liderança. 

Além do fator físico, é inegável que o psicológico presta um papel de suma importância na prática de esportes e, em especial, dos esportes competitivos. Os estudos do professor Leonardo Alvares, mencionado anteriormente, avaliaram também o humor e a qualidade do sono de atletas trans e cis. Durante a pesquisa, as atletas trans apresentaram diversas queixas relacionadas ao preconceito e à exclusão, que impactam diretamente nos jogos e inclusive podem levar a transtornos como depressão e ansiedade e ao suicídio.

E as pessoas transmasculinas?

Os estudos acerca de mulheres trans são poucos, mas o debate recorrente sobre o assunto é um dos incentivos para a criação de materiais que avaliem a questão. Em relação aos homens trans, no entanto, a invisibilidade garante que suas existências não sejam nem ao menos mencionadas na discussão, o que, consequentemente, resulta em estudos ainda mais escassos. As modificações que a testosterona provocam no corpo são pouco exploradas e a comparação desses corpos com corpos de homens cis em relação à prática de esportes é completamente ignorada. 

É inegável que tal invisibilidade acarreta falta de oportunidades. Seja em times masculinos ou em times femininos — que muitas vezes é a única opção —, a identidade de gênero dessas pessoas será diminuída. Assim como no caso das mulheres trans, a consequência é um psicológico abalado, levando também à depressão e à ansiedade e, claro, impactando na performance. O projeto Transexualidades e saúde pública no Brasil: entre a invisibilidade e a demanda por políticas públicas para homens trans, publicado em 2015, entrevistou um grupo de homens trans, do qual 85,7% afirmam já ter pensado ou tentado cometer suicídio.

A quem interessa banir pessoas trans dos esportes?

A transfobia não afeta apenas pessoas transgênero. Atletas cis racializadas, em especial negras, frequentemente enfrentam dificuldades para entrar em competições por possuírem níveis maiores de testosterona do que mulheres brancas. Em 2021, as atletas Christine Mboma e Beatrice Masilingi, ambas da Namíbia, foram proibidas de correr nos 400 metros dos Jogos Olímpicos de Tóquio devido ao seu nível de testosterona natural ser superior ao “esperado” para mulheres cis. 

Desde 2011, a Federação Internacional de Atletismo (World Athletics, IAAF) possui regras específicas em relação ao nível hormonal de atletas mulheres. Em 2019, essas regras foram atualizadas após a vitória da Caster Semenya, mulher cis negra sul-africana e intersexo, nos 800 metros. A IAAF modificou o limite dos níveis de testosterona e solicitou que ela utilizasse medicamentos para suprimir seus hormonios considerados “masculinos” ou competisse contra homens (cis). Atletas como Francine Niyonsada (do Burundi), Margaret Wambui (do Quênia) e Dutee Chand (da Índia) também tiveram suas participações negadas em campeonatos Olímpicos. Todas essas mulheres são cis, mas esta não é a única coisa que elas possuem em comum: são todas mulheres racializadas (negras ou marrons). Além da racialidade, a possibilidade de uma intersexualidade também deve ser levada em consideração.

Além do entrelace entre a transfobia e o racismo, a pauta da proibição de pessoas trans nos esportes também foi cooptada pelo viés político. No Brasil, entre 2019 e 2022, foram criados ao menos 16 projetos de lei que visavam proibir a participação de atletas trans em competições esportivas; todas essas propostas, no entanto, foram criadas por pessoas que não possuíam qualquer ligação ou interesse com os esportes, mas sim uma grande conexão com o preconceito e com a extrema direita. Todos os projetos tinham como objetivo tornar o “sexo biológico” — um conceito frágil por si só — o único critério para a definição do gênero nos esportes, com multas chegando a R$82 mil para federações que não adotassem tais regras. 

O pânico em relação à presença de pessoas trans nos esportes, então, prova-se como uma ferramenta que promove a misoginia, o racismo, o intersexismo e, claro, a transfobia, mas que não possui realmente um fundamento. É um discurso consciente que tem como objetivo enquadrar a transgeneridade como um inimigo social comum, promovendo a opressão desta comunidade — que leva à morte, seja ela por assassinato direto ou indireto (suicídio). 

É essencial manter em mente que a falta de informações sobre a disparidade entre mulheres trans e mulheres cis e entre homens trans e homens cis, apesar de não significar necessariamente que há uma igualdade de corpos, também não significa o oposto. O incentivo ao estudo sobre corpos e existências trans permitirá um olhar mais certeiro acerca do assunto. Além disso, é necessário saber criticar a forma em que a organização esportiva já ocorre, questionando quais critérios são necessários para a divisão de uma categoria esportiva e quais existem apenas para atacar corpos específicos.


Referências


Ficha técnica

Escrita: Viktor Bernardo Pinheiro
Revisão: Mariana Correa e Déborah Crivellari