A infantilização de pessoas com Síndrome de Down

O capacitismo opera de diferentes formas e em diferentes frentes na vida de uma pessoa com Síndrome de Down (SD): na falta de acessibilidade estrutural, na ausência de oportunidades, na exclusão e no isolamento social, nos preconceitos e estereótipos, na falta de incentivo, entre outros. Porém, uma de suas facetas mais perversas é a constante infantilização desse grupo em diversos âmbitos de sua vida.

A infantilização das pessoas com Síndrome de Down, enraizada nas bases capacitistas da sociedade, é, com facilidade, incorporada no interior dos lares dessas pessoas — que deveriam ser a primeira fonte de apoio e suporte ao indivíduo. Nos ambientes familiares, pais, mães e parentes percebem as pessoas com SD como pessoas de natureza frágil, inocente e sem maldade, isto é, uma eterna criança. Consequentemente, acreditam que elas não conseguiriam existir plenamente sem constante proteção, segurança e vigilância ofertadas pela família.

O medo exacerbado e a superproteção dos familiares promovem uma cadeia de eventos prejudiciais ao longo da vida de pessoas com SD. Submetidas a incessantes cuidados e direcionamentos, elas são impossibilitadas de desenvolver as mais básicas habilidades sociais e emocionais, assim como suas potencialidades. Dessa forma, é ceifada delas a possibilidade de adquirir e construir sua autonomia e independência.

O protagonismo de suas próprias vidas é removido de seus ombros, primeiramente, pela família e, logo depois, pela sociedade. A pressuposição de incapacidade e dependência dificulta a inserção de pessoas com SD no mercado de trabalho, que não direciona vagas voltadas exclusivamente para esse público, obrigando-as a pleitear as poucas vagas reservadas a PCDs com um grande número de pessoas com as mais variadas deficiências. Ainda que sejam contratadas, pessoas com SD não estão livres de enfrentar estigmas e obstáculos oferecidos pelo capacitismo no ambiente de trabalho. 

A percepção de que pessoas com SD são eternas crianças não compromete apenas a vida profissional desse grupo, mas também a vida afetivossexual. A resistência de familiares em possibilitar um ambiente seguro para que essas pessoas consigam desenvolver suas defesas e potencialidades, assim como conhecer e ter domínio sobre seu corpo e sua sexualidade, priva-as do autoconhecimento, confiança e segurança em relação a si mesmas, importantes para que possam se relacionar intimamente com outras pessoas. Além disso, numa sociedade capacitista, as PCDs, no geral, não são consideradas parcerias potenciais para se viver relações afetivossexuais.

Somado à dificuldade de construir e manter vínculos sexuais e/ou românticos, existe uma maior suscetibilidade a cenários de abuso e violência, ocasionados pela infantilização. Esses casos ganham nuances específicas em se tratando de gênero. No que diz respeito às mulheres cis — e às pessoas socializadas como mulheres — com SD, além de serem descredibilizadas e, por vezes, culpabilizadas quanto à ocorrência de abuso sexual, especialmente quando praticadas por pessoas da família, elas também são privadas do direito à maternidade, sendo submetidas à esterilização compulsória. Ao considerar os âmbitos de raça, classe e orientação sexual, escancaram-se condições de violência e marginalização ainda mais alarmantes. 

Percebe-se, então, que a infantilização traz impactos consideráveis para a vida das pessoas com SD. A constante negação e privação de direitos básicos denuncia o caráter de sub-humanidade atribuído a esse grupo de pessoas. Sendo assim, é compreensível que uma das mais importantes reivindicações deste grupo seja a plena e devida exploração da vida em todos os seus aspectos, sejam eles negativos, sejam eles positivos. Contudo, é importante frisar que a luta para o alcance de uma existência mais autônoma, saudável e digna para as pessoas com Síndrome de Down não deveria ser uma jornada solitária, mas sim ser de responsabilidade de qualquer pessoa que defende uma vida justa, igualitária e livre para todes.


Referências


Ficha técnica

Escrita: Mell Martem
Revisão: Viktor Bernardo Pinheiro e Ingredy Boldrine