Cisnarcisismo

A construção da sociedade se dá de forma a privilegiar determinados grupos, seja com base em gênero, raça, classe econômica ou quaisquer outras características baseadas em desigualdade. Acostumados com os privilégios e com a atenção, os pertencentes a estes grupos passam a acreditar que tudo é sobre eles, como se estivessem no centro do mundo — seja de forma consciente ou não.

O pacto narcísico da branquitude é um termo cunhado por Cida Bento, doutora em psicologia e uma das fundadoras do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (Ceert), em busca de explicar o acordo tácito entre pessoas brancas em relação a privilegiar e proteger não apenas pessoas, mas ambientes brancos. 

Voltado para o mercado de trabalho, seu estudo aponta para muito além disso. O apontamento do dito “racismo reverso”, por exemplo, é uma das formas da branquitude ocupar, mais uma vez, o lugar de pessoas racializadas, especialmente ao ver as vozes de pessoas não-brancas sendo ouvidas cada vez mais.

Isso não acontece apenas em relação a raça, mas a minorias de modo geral. É comum ver, por exemplo, pessoas CHAP — não pertencentes à comunidade LGBTQIA+ — revertendo situações de LGBTfobia para si, como se o fato de serem tachadas de LGBTfóbicas fosse uma ofensa maior do que o ato da LGBTfobia em si.

O cisnarcisismo — ou narCISismo — é um fenômeno recorrente entre pessoas cisgênero (aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascer), sendo apresentado de várias formas diferentes. 

Algumas transfobias explícitas, como a visão da transgeneridade como um “disfarce” utilizado por um “predador”, se encaixam no conceito; no entanto, o egocentrismo cisgênero vai muito além do escancarado, sendo sutil em muitos casos, como a visão transmedicalista de que o objetivo de uma pessoa transgênero é modificar o seu corpo para encaixar-se em padrões cis. 

É possível, inclusive, virem disfarçadas de apoio, como a vitimização após errar os pronomes e/ou nome de alguma pessoa trans, colocando-se em um lugar de coitadismo em busca de reafirmar a sua aliança à causa, mas sem se importar verdadeiramente com os sentimentos da pessoa ferida ou em corrigir o seu preconceito. Não adianta — e é extremamente desconfortável — repetir sobre o quanto você está “tentando aprender”, trazendo toda a atenção para si, sem realmente compensar e substituir esses erros.

A cisgeneridade, enquanto maioria social, precisa compreender o que é a cisnormatividade, perceber a sua posição de privilégio e buscar formas de auxiliar a luta de pessoas trans, dando voz a essa comunidade que sempre foi forçada a se manter em silêncio.


Referências: