A ideia de cancelamento pode ser explicada como a cobrança de conserto que acontece após o reconhecimento de alguma atitude considerada problemática, tendo por exemplo os discursos de ódio. O seu objetivo é não dar palco para pessoas de caráter duvidoso.
Na teoria, o cancelamento é ótimo, levando em conta a importância de defender determinadas pautas; mas na prática a tão conhecida e temida “cultura do cancelamento” não passa de linchamento virtual, cyberbullying e engajamento não apenas para o lado “cancelador”, mas para o “cancelado” também, indo contra a sua ideia original.
Acredita‐se que o mármore e a essência do conceito de cancelamento venha de 2017, através do movimento #MeToo, no qual várias pessoas, sendo homens, mulheres e não-bináries, compartiharam inúmeras histórias de assédio sexual sob a hastag. Segundo um levantamento realizado pelo New York Times, cerca de 200 homens influentes perderam seus cargos após acusações públicas de assédio, incluindo o ex-produtor de filmes norte-americanos Harvey Weinstein, co-fundador da empresa Miramax — responsável por produzir Pulp Fiction.
Desde então, as redes sociais têm se tornado um ambiente cada vez menos tolerante com comportamentos ofensivos, tendo cada vez mais famoses sendo “cancelades” por comportamentos inadequados, alguns tendo suas carreiras afetadas e outros tão pouco se sentindo afrontados.
Ao analisar o que leva as pessoas a se unirem contra um dado comportamento, é observado um preenchimento do sentimento de pertencimento, que muitas vezes não é experimentado fora do ambiente virtual. Existem casos, também, no qual o movimento é baseado em um desejo por justiça, que é uma prática muito mais antiga.
No Brasil, por exemplo, temos a descrença no sistema judiciário, que na visão geral é caracterizado como lento e pouco efetivo. Assim, o coletivo se vê obrigado a fazer justiça com as próprias mãos e aproveita do aparente anonimato das redes, resultando no conhecido linchamento.
Com o movimento de “cancelamento”, temos a passagem desse linchamento para o âmbito virtual, no qual trocam‐se os socos e pontapés por palavrões e ameaças, ainda que tal comportamento seja conhecido como cyberbullying, e que, mesmo a justiça brasileira sendo lenta e morosa, seja crime de acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/18) ,o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/12) e a Lei dos Crimes Cibernéticos (Lei nº 12.737/12)
E, ainda que tenhamos alguns exemplos de artistas que tiveram sua carreira abalada, o “cancelamento” não atinge todos os grupos de formas iguais, tendo maior impacto quando se tratando de minorias, enquanto em outros casos a cobrança e/ou ataques duram no máximo alguns dias, havendo casos em que um simples vídeo chorando magicamente torna o comportamento, até então problemático, em um errinho bobo e inocente.
Um exemplo, relacionado à 20° edição do BBB, no qual a influencer Bianca Andrade — conhecida como Boca Rosa — é “cancelada” por não defender as mulheres em um caso de machismo ocorrido na casa. Por conta disso, ela foi eliminada da edição em um paredão junto de Felipe Prior, um dos perpetuadores do machismo na edição.
Há também o caso do Youtuber Julio Cocielo, que, em junho de 2018, após fazer uma “piada” de teor racista com o jogador Kylian Mbappé, perdeu cerca de 7,5 mil seguidores em um dia e alguns patrocínios, acarretando em um vídeo de desculpa e uma multa de R$ 7 milhões por danos coletivos (Folha de S. Paulo, 2018). Atualmente, o youtuber possui 20,6 milhões de inscritos no YouTube e 8 milhões no twitter.
É notável a apatia e selvageria durante os ataques gerados no cancelamento; a exposição, a humilhação e o julgamento público, que acabam por reforçar a diferença social entre opressor e oprimido, visto que aqueles que usufruem do privilégio de opressor acabam ganhando engajamento, seja de pessoas que compactuam com o comportamento problemático ou de pessoas que acham um exagero as ameaças de mortes e xingamento — o que, muitas vezes, é.
O assédio direcionado se soma à dificuldade de medir problemáticas, o que descredibiliza diversas pautas sociais. Assim, automaticamente, qualquer correção é vista como problematização e mimimi e, possivelmente, ignorada, ou reduzida a piadas e memes.
A agressividade também se torna problemática em muitos pontos, pois, ainda que algumas pessoas possam considerar o merecimento por suas atitudes, ela contribui para que a pessoa “cancelada” e seus comportamentos questionáveis sejam postos lado a lado de suas consequências, ou seja, dos ataques recebidos e das pessoas que os fazem. Isso dificulta a análise crítica de atitudes de modo geral, causando a superficialização do problema e esvaziando as questões inerentes a ele.
Portanto, ao analisar as “cultura do cancelamento”, do movimento #MeToo para cá, notamos uma perda de essência e um crescimento na ânsia por punir e condenar quaisquer pessoas sem um objetivo específico, reforçando um lado mais autoritário do coletivo.
A cultura do cancelamento, hoje, só existe para descredibilizar pautas e atacar minorias — pessoas racializadas, lgbtq, pobres e com deficiência —, sendo uma ferramenta que traz mais malefícios do que benefícios.
A ideia de expor comportamentos problemáticos é necessária para quebrar e impedir a normalização de tais atitudes, porém o problema surge quando a execução do ato se restringe em punir e humilhar o indivíduo, ao invés de corrigir o mesmo e apontar os erros, procurando assim não só educar o indivíduo em si, mas todes aquelus que acompanham o caso.