Em 1948, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Esse documento, feito 4 anos após a Segunda Guerra Mundial — evento que escancarou as atrocidades que a humanidade pode realizar quando é movida por crenças racistas e discriminatórias — foi elaborado num esforço conjunto de representantes de países de todas as regiões do mundo de estabelecerem normas a serem seguidas por todas as nações.

Em 30 artigos, a DUDH institui parâmetros para a proteção universal dos direitos humanos. Dentre esses artigos, o de número 16 define que qualquer pessoa adulta tem direito de casar e constituir família, independentemente de raça, nacionalidade ou religião. A promulgação desse documento instaurou as bases do que viria a ser uma luta gradual, país a país, pelo alcance do direito ao casamento LGBTQ+.
O direito ao casamento igualitário no mundo
Ainda em 1948, na Dinamarca, o ativista Axel Lundahl-Madsen, inspirado pela DUDH, fundou, juntamente com outras pessoas, a Kredsen af 1948 (“Círculo de 1948”) que, posteriormente, foi renomeada para F-48 (“Forbundet af 1948”, em português, “Associação de 1948”), a primeira organização em prol dos direitos LGBTQ+ do país. A intensa atividade e militância desse grupo culminou na oficialização da união civil por casais de mesmo sexo na Dinamarca, em 1º de outubro de 1989, tornando-a o primeiro país a reconhecer oficialmente a união estável entre casais homoafetivos.
Axel Lundahl-Madsen e seu marido Eigil Eskildsen, que se conheceram na F-48 e já adotavam o sobrenome que criaram juntos a partir da união de parte dos seus nomes, Axgil, sendo conhecidos como Axel e Eigil Axgil, foram o primeiro casal gay a usufruir desse direito civil histórico no país e no mundo. Os países vizinhos à Dinamarca — Noruega, Suécia e Islândia — só vieram a incorporar a união civil à sua legislação, respectivamente, nos anos de 1993, 1995 e 1996.
Apesar do grande avanço na conquista de direitos para a comunidade LGBTQ+, a união civil legal ainda não correspondia ao reconhecimento do casamento igualitário que a comunidade ansiava; este só viria a acontecer anos depois, também na Europa, mais precisamente em abril de 2001, na Holanda. Assim, proveniente de uma intensa pressão da comunidade, que não se conformava com a adoção da união civil somente, o reconhecimento do casamento entre pessoas da comunidade LGBTQ+ foi conquistado em 1998 no país, que marcava a diferenciação existente na sociedade holandesa entre pessoas da comunidade LGBTQ+ e as heterossexuais. Posteriormente, outros países da Europa viriam a igualar os direitos ao casamento entre pessoas LGBTQ+ e não-LGBTQ+, o que fez da Europa o continente com o maior número de países pró-casamento LGBTQ+.
No entanto, foi apenas meio século após a adoção da DUDH, mais precisamente 53 anos, que houve a extensão à comunidade LGBTQ+ desse direito universal que deveria contemplar toda e qualquer pessoa. Mas não por unanimidade. No continente europeu, considerado pioneiro nos avanços do direito ao casamento pela comunidade LGBTQ+, apenas 22 de seus 50 países legalizaram o casamento igualitário.
Por maiores que sejam as conquistas obtidas pela luta dos movimentos LGBTQ+ ao redor do globo, elas, infelizmente, não se estendem a todas as nações e continentes. Atualmente, 77 anos depois da promulgação da DUDH, somente 39 países possuem legislação favorável ao casamento igualitário. Ainda existem países que permitem exclusivamente a união civil, enquanto outros não detêm qualquer legislação acerca do casamento LGBTQ+.
Em se tratando do Sul global, o primeiro país a atingir os mesmos feitos foi a África do Sul, em 30 de novembro de 2006. A conquista da legalização do casamento LGBTQ+ no país iniciou-se a partir de um caso judicial, conhecido como caso Fourie, envolvendo o casal de mulheres, Marie Fourie e Cecilia Bonthuys. Em outubro de 2002, o casal teve seu direito ao casamento negado por conta da interpretação de que o casamento não abrangia a união entre pessoas LGBTQ+. Ao levarem esse caso a um tribunal de recursos, a Suprema Corte de Apelações, em 30 de novembro de 2004, entendeu que a definição legal do casamento como uma “união entre um homem e uma mulher” era anticonstitucional, já que a Constituição do país já vetava discriminação contra pessoas LGBTQ+. Mais de 200 pessoas reuniram-se para acompanhar o julgamento, expondo em suas vestes o slogan “Marriage. Anything less is not equality” (em português, “Casamento. Qualquer outra coisa não é igualdade”).
Contudo, mesmo após terem o recurso favorável a elas, Marie Fourie e Cecelia Bonthuys não conseguiram se casar, tendo sua união recusada pelo Ministério do Interior, que levou o caso à Corte Constitucional. Somente em 1 de dezembro de 2005, com o envolvimento da organização em defesa dos direitos da comunidade LGBTQ+, “Lesbian and Gay Equality Project” (LGEP, em português, “Projeto Igualdade Gay e Lésbica”), a corte entendeu que a negação ao casamento entre pessoas LGBTQ+ possuía caráter inconstitucional e concedeu ao Parlamento o período de um ano para retificar a legislação vigente. Assim, em 30 de novembro de 2006, foi instituída a Lei da União Civil, que oficializou os casamentos LGBTQ+ na África do Sul.
Diante do cenário de criminalização e penalização das identidades dissidentes de sexo e gênero e privação de direitos observadas em diversos países africanos, a África do Sul, o primeiro e único país africano a permitir o casamento igualitário, desponta como um importante baluarte de resistência e esperança para os movimentos LGBTQ+ de todo o continente. O país é o destino de refúgio para os chamados asilados sexuais: pessoas LGBTQ+ provenientes de outros locais do continente, que por serem alvos de políticas de estado LGBTQfóbicas, são impossibilitadas de permanecer em seus respectivos países.
Já no continente asiático, Taiwan foi o primeiro país a permitir que pessoas LGBTQ+ pudessem se casar. Em 17 de maio de 2019, o parlamento do país assegurou a ampliação de direitos à comunidade LGBTQ+, aprovando a legalização do casamento LGBTQ+. A votação foi acompanhada por 37 mil pessoas do lado de fora do parlamento. Anterior a esse período, dois anos antes, o Tribunal Constitucional taiwanês já tinha decidido ser inconstitucional a proibição do casamento à comunidade. Uma curiosidade torna essa conquista ainda mais especial e simbólica: o dia 17 de maio é o Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. O Nepal, em 2023, e a Tailândia, em 2025, uniram-se a Taiwan, tornando-se as únicas nações asiáticas a legalizarem o casamento LGBTQ+.
O direito ao casamento igualitário no Brasil
No Brasil, a conquista da legalização do casamento LGBTQ+ ocorreu em 2013, mas não foi o primeiro país da América Latina a alcançar tal conquista, esse título é da Argentina, que teve o casamento entre pessoas LGBTQ+ legalizado em 2010. A reivindicação desse direito no Brasil remonta aos anos 90, no qual o movimento LGBTI+ se envolveu na esfera jurídica para que por meio dela obtivesse o direito ao casamento igualitário. Em 1995, o movimento participou da elaboração do projeto de lei a favor da união civil entre pessoas do mesmo gênero (PL nº 1151/1995), apresentado pela deputada federal Marta Suplicy, porém sem êxito. Ainda assim, mesmo enfrentando forças conservadoras de oposição, o movimento não recuou, estando presente em audiências públicas, realizando intervenções junto ao Congresso Nacional e promovendo atos de militância e mobilizações em campanhas.
No dia 5 de maio de 2011, as reivindicações do movimento LGBTI surtiram efeito, com o Supremo Tribunal Federal (STF), que em unanimidade reconheceu que os direitos de constituir família delegados às pessoas heterossexuais deveriam se estender às pessoas LGBTQ+. Ainda não era a legalização propriamente dita do casamento LGBTQ+, de modo que, a recusa de realização da união era frequente em diversos locais. Somente em maio de 2013, através da aprovação da Resolução 175, que formaliza o direito ao casamento civil por pessoas do mesmo sexo, convertendo união estável em casamento, que a comunidade LGBTQ+ brasileira encontrou respaldo legal para usufruir deste direito.
Contudo, ainda que a legislação seja favorável ao casamento civil, isso não significa que este direito está seguro. Fundamentalistas religiosos formam uma frente unida no Congresso para revogar os direitos já conquistados. Em 10 de outubro de 2023, foi aprovada pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados a votação da PL nº 5167/2009, que busca vetar o direito ao casamento civil pela comunidade LGBTQ+.
A proposta, cujo relator é o deputado Pastor Eurico (PL – Partido Liberal), precisa passar pela pela Comissão de Direitos Humanos, pela Comissão de Constituição e Justiça e pelo Senado para que possa entrar em vigência. Contudo, ainda que siga em trâmite, integrantes do movimento LGBTQ+, advogades membros da sociedade civil e deputades expõem a inconstitucionalidade da proposta, que vai contra o que foi estabelecido pelo STF em 2011.
Em tempos de avanço da extrema-direita, de revogação de direitos e do aumento da violência LGBTQfóbica, é importante relembrar a própria história. Entre conquistas e retrocessos, a comunidade LGBTQ+ sempre se mostrou ferrenha e perseverante na busca por seus direitos. Essa luta que remonta séculos expõe a resiliência deste grupo. A resistência ao preconceito, à discriminação, à violência e à intolerância nunca deixou de existir.
Num período em que a comunidade vem sendo, escancaradamente, ameaçada e coibida, contemplar os próprios passos pode ser uma estratégia poderosa. A longa e árdua caminhada até aqui serve de inspiração e referência para o espinhoso caminho à frente. O ativismo LGBTQ+ conseguiu nascer e crescer em contextos completamente desfavoráveis. Se mesmo nessas circunstâncias ele conseguiu prosperar e se manter, não há conservadorismo que o pare, que o mine. Não há poder neste mundo, por mais institucionalizado que seja, que possa erradicar um movimento que, contra tudo e todes que a ele fizeram oposição, encontrou maneiras de escrever seu nome na história.
Onde o retrocesso impera, que a luta nunca recue, que a união e a resistência se fortaleçam e se propaguem.
Referências
- Regulamentação do casamento homoafetivo completa 10 anos em maio | Anoreg-CE
- 34 países permitem casamento entre pessoas do mesmo sexo | Poder 360
- Comissão da Câmara aprova proibição do casamento homoafetivo | Congresso em Foco
- O casamento igualitário fica: uma história de conquista | Congresso em Foco
- Comissão aprova projeto que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo | Câmara dos Deputados
- Conheça a história do casamento gay no mundo | Diário do Grande ABC
- Casamento gay: onde ocorreram as primeiras cerimônias, há exatos 20 anos | BBC
- Where same-sex marriage is legal around the world | CNN World
- Declaração Universal dos Direitos Humanos | UNICEF
- Artigo 16°: Todo adulto tem o direito de casar e constituir família | Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
- Declaração Universal dos Direitos Humanos | Nações Unidas – Brasil
- A história do 1º casal gay ‘de papel passado’ do mundo, que ficou junto até a morte | BBC
- Casamento gay: onde ocorreram as primeiras cerimônias, há exatos 20 anos | BBC.
- Os Axgil: A ousadia de serem os pioneiros | Esqrever
- 1º casal gay do mundo: eles criaram um sobrenome e viveram mais de 40 anos juntos | Terra
- Taiwan é o primeiro país da Ásia a legalizar o casamento gay | Carta Capital
- África do Sul vira principal refúgio para gays perseguidos no continente | BBC
- Court approves same-sex couple’s right to marry | South Africa History Online
- Justiça da África do Sul examina a legalidade do casamento homossexual | IBDFAM
- África do Sul vai legalizar casamento homossexual | BBC
- Casamento homoafetivo só é reconhecido em 17% dos países | Opera Mundi
- Aprovação do casamento gay entra em vigor essa semana na Tailândia | CNN Brasil.
- Deputados de extrema direita querem o fim do casamento civil igualitário | PT
- PL 1151/1995 | Câmara dos Deputados
Ficha técnica
Escrita: Mell Martem
Revisão: Brian Abelha e Mariana Correa