A luta de pessoas transgênero pelo direito de ser e existir se dá há muito mais tempo do que aparenta. Ainda assim, desinformações acerca da causa permanecem presentes nos debates sobre o assunto. Dentre eles, a famosa descrição de pessoas trans como “pessoas que nasceram no corpo errado”, sempre acompanhada do discurso de que a hormonização e as cirurgias servem para alinhar esse corpo com a mente.
Estar “no corpo errado” significa que a sociedade compreende que a pessoa trans é de um gênero, mas o corpo dela é de outro. Esse mito anda lado a lado com o transmedicalismo, isto é, a ideia de que ser trans é uma condição médica. Neste caso, acredita-se que a transição física — as alterações realizadas no corpo — tem como objetivo adequar a aparência ao gênero da mente.
Essa definição está correta?
A ideia de “nascer no corpo errado” tem como principal base a noção de que existe um corpo masculino e um corpo feminino, sendo eles determinados em um primeiro momento com base em genitais e depois por expressões de gênero, linguagem, atividades sociais, entre outros.
Nesse viés, tal noção é problemática de berço, de modo que utilizar características físicas para definir um gênero é excludente, por exemplo, com pessoas intersexo; enquanto utilizar expressões e gostos é excludente com pessoas que não se encaixam nesses padrões, incluindo pessoas cis — não-trans.
Além disso, associar aparência a um gênero específico é discriminatório com diversas identidades de gênero não-binárias e, ainda, com gêneros étnicos, de povos que nunca adotaram a dicotomia europeia homem-mulher. A separação entre o que é ser homem e o que é ser mulher se apresenta enquanto uma construção da cisciedade — sociedade cis(normativa) — e tem como objetivo limitar a pluralidade humana, e a transgeneridade por si só é uma quebra dessas caixinhas.
A definição de “estar prese no corpo errado” vem de um ponto de vista cisnormativo. A existência da transgeneridade, na verdade, explicita que dois grupos baseados em categorias físicas não abrangem a complexidade de 8 bilhões de pessoas e que a diversidade humana está presente em identidades e em expressões de gênero, que muitas vezes se relacionam a gostos e experiências próprias.
Isso não significa que pessoas trans não queiram transicionar fisicamente, de modo que algumas vão querer e outras não, mas sim que passar por cirurgias e hormonização não é uma condição para ser trans. O equívoco da frase encontra-se no fato de cada corpo pertencer à pessoa que o tem, sendo diverso e único — Uma mulher trans tem um corpo feminino, pois a pessoa que vive em seu corpo é uma mulher, independente de sua genitália, cromossomo, vestimenta ou da designação que recebeu quando nasceu. Pessoas trans nasceram no corpo certo, mas numa sociedade errada.