Transmisoginia e Autopercepção

Pessoas trans alinhadas ao feminino enfrentam diversas formas de discriminação em suas vidas diárias. Isso pode parecer óbvio, mas é necessário em tempos nos quais se tem esquecido o básico, especialmente quando o assunto envolve empatia.  A transmisoginia, que é a interseção entre a transfobia e misoginia direcionadas especificamente a pessoas trans alinhadas ao feminino, faz com que essas pessoas recorram a estratégias para evitar ou mitigar esse tipo de violência, em prol de sua sobrevivência e saúde mental.

Tomando por base a teoria da transfeminista norte-americana Julia Serano, no livro “The Whipping Girl”, lê-se que existe uma obsessão social envolvendo expressões de feminilidade de homens e pessoas trans (que a autora nomeia effemimania), influenciada pelo “sexismo de oposição”, que pode ser definido como a crença de que feminino e masculino são categorias rígidas e mutuamente excludentes. Dessa maneira, é a effemimania que vai abordar e tentar explicar porque as expressões de gênero de pessoas trans alinhadas ao feminino são rotineiramente sensacionalizadas, rigorosamente policiadas e, finalmente, patologizadas. 

A misoginia enfrentada pelas pessoas transfemininas pode ser diferenciada devido à effemimania, contribuindo assim para a transmisoginia, consequência dessas compreensões equivocadas. É fruto da sensacionalização que transforma seus corpos em objetos e levam-nos ao fetichismo, ambos intensos e com características que os diferenciam da misoginia tradicional. Judith Butler lembra, na entrevista intitulada “Porque os homens matam mulheres trans?”, que há uma longa história de travestis, drag queens e pessoas trans como ícones visuais — e às vezes o público quer que elas fiquem exatamente naquele lugar, no palco ou no filme, “ali”, mas não façam parte da vida. Não querem que tenham uma vida profissional, que tenham uma vida social real. 

Por outro lado, o bizarro policiamento sobre pessoas transfemininas torna necessária a criação de espaços seguros e a construção de redes de apoio, para que essas pessoas possam se aprofundar na busca de suas identidades. Isso porque os espaços públicos tornam-se hostis quando sua expressão de gênero é policiada. Judith Butler diz que “as mulheres trans abandonaram o que se entende por masculinidade, e isso é entendido como ameaça por homens que desejam ver o seu poder como uma característica intrínseca de quem são”. Diante da constante vigilância e crítica em relação às suas expressões de gênero, as mulheres trans são impulsionadas a buscar ambientes onde possam se sentir aceitas, respeitadas e protegidas, por isso grupos de acolhimento tem se multiplicado. Não é incomum que a autodefesa de mulheres trans e travestis seja um assunto importante na comunidade, existindo até mesmo manuais a respeito. 

Com relação à patologização da expressão de gênero transfeminina, por ainda ser considerada por determinadas pessoas como um distúrbio ou desvio mental, a comunidade trans se preocupa em relação à educação sobre identidade de gênero e com a busca por proteção legal junto aos grupos de defesa dos direitos LGBTQIAPN+. A despatologização das identidades trans continua sendo uma importante agenda política da comunidade, embora a pauta esteja sendo abandonada devido à mudanças na CID (Classificação Internacional de Doenças), tais mudanças não ocorrem na prática.

Essas são apenas algumas das consequências que a transmisoginia pode ter para pessoas trans alinhadas ao feminino, destacando o fato de que os fatores elencados são empecilhos para o desenvolvimento da identidade de gênero. Por vezes, mulheres trans e travestis sentem a necessidade de buscar o que é chamado de “passabilidade”, ou seja, a capacidade de serem percebidas como cisgênero, para minimizar os efeitos da transmisoginia. É importante combater essas formas de discriminação e promover a inclusão e o respeito pelos direitos das mulheres trans, por uma questão de justiça e igualdade para todas as pessoas que querem compreender o máximo possível sobre quem são, e exercer sua individualidade, independente da identidade de gênero.


Referências


Ficha técnica

Escrita: Gianni Gomes
Revisão: Arê Camomila da Silva