Se você usa a internet e suas redes sociais, provavelmente está familiarizade com o termo queer. Há quem conceitue o termo como o que é “diferente”, “volátil” ou “surpreendente”. Na verdade, um corpo queer atravessa limites impostos, é um corpo livre e que caminha na direção de usufruir plenamente sua corporalidade. A luta desses indivíduos é baseada no questionamento a padrões estabelecidos e hegemônicos. Isso significa que o queer está dizendo: esses valores que estão aí, que são hegemônicos, não me servem! São regras culturais e sociais preconceituosas, marcam os que não se enquadram usando de violência. Na realidade, o conjunto de valores vigente não serve a ninguém. É preciso mudar.
Um resumo histórico de Richard Mislolci relata que o antigo movimento homossexual denunciava a heterossexualidade como sendo compulsória, o que podia ser compreendido como uma defesa da homossexualidade, relegando à humilhação e ao desprezo coletivo os considerados anormais, os corpos que não se enquadram no modelo heteroreprodutivo. Dessa maneira, é natural que a simples inserção dos corpos transgênero na sociedade seja parte essencial e indissociável da cultura queer, pois a existência desses corpos desafia a normatividade cisgênera, a binariedade e os estereótipos de gênero.
Nos anos 60, a venda de bebidas alcoólicas para pessoas LGBTQ+ era proibida nos Estados Unidos, por esse motivo, eram raros os bares que aceitavam a entrada de pessoas da comunidade. Mas havia um bar clandestino em Nova Iorque, chamado Stonewall, que era o único bar gay da região e só podia funcionar porque pagava propina semanalmente para a polícia. Ainda assim, frequentadories e funcionáries do bar eram constantemente levades à prisão em batidas policiais.
Em uma dessas batidas, ocorreu a famosa Revolta de Stonewall (1969), revolta da qual mulheres transgênero e travestis fizeram parte da linha de frente. Marsha P. Johnson foi uma delas, teve sua vida dedicada à luta queer. Um ano após a revolução, Marsha se juntou com Sylvie Rivera, sua amiga e ativista drag queen, e fundaram a S.T.A.R. (Street Transvestite Action Revolutionaries, ou Revolucionárias da Ação Travestis de Rua), uma casa para jovens trans desabrigades.
Em comparação às identidades trans, “travestis” são atravessamentos latino-americanos negros e de religiosidades afro-brasileiras com questões étnico-raciais, de gênero e de classe. É possível ser trans e travesti porque é possível vivenciar essas experiências fluidas ao mesmo tempo, e por envolver um contexto específico relativo à territorialidade, corpos travestis são ainda mais fluidos e transgressores de normas impostas.
No Brasil, dentre tantas outras pessoas trans, uma que merece citação é ê Indianarae Siqueira. Elu é uma pessoa transvestigênere — é, inclusive, criadore desse termo — e ativista da causa trans. Em 2015, fundou a CasaNem no Rio de Janeiro, um abrigo que visa acolher pessoas LGBTQ+, a instituição tinha mais de 20 moradores em 2020, mas cerca de 400 pessoas são atendidas de outras formas pela entidade. Além disso, criou um programa preparatório para o ENEM dedicado a pessoas trans.
Amara Moira fala sobre o assunto ao comentar que a luta não é sobre acumular estereótipos cis para camuflar-se na multidão, e sim dar legitimidade ao discurso que enxerga a mulheridade trans como integrante da própria noção de mulheridade. É por isso que exclamações de estranhos ao esbarrarem com uma pessoa trangênero nas vias públicas, os “meu Deus, o que é isso?”, ao entenderem determinados corpos como não pertencentes ao conjunto de regras estabelecidas, são sinais de que esses corpos, transgêneros/travestis/transvestis, ainda precisam ser aceitos como dignos de existir. Todo corpo trans é, a princípio, uma manifestação de que há algo muito errado com o sentido que as palavras homem e mulher comunicam e de que esse sentido precisa ser questionado.
O movimento queer, por sua própria essência, desafia as normas estabelecidas e hegemônicas que oprimem e marginalizam aquelus que não se encaixam nos padrões tradicionais. Pessoas trans são corporificação da busca social e política pela plenitude de quem é considerado fora da norma, luta fundamental para questionar e desafiar os valores culturais e sociais preconceituosos que perpetuam a discriminação e a violência.
A inserção dos corpos transgênero na sociedade é uma parte indissociável da cultura queer, pois amplia a compreensão da diversidade de gênero e rejeita a normatividade opressiva. Reconhecer a mulheridade trans, a homenzidade trans e a ageneridade como partes integrantes da sociedade é um passo essencial na busca pela igualdade e pela aceitação de todos os corpos, independentemente de se enquadrarem ou não em padrões pré-estabelecidos. Portanto, quando vemos sinais de estranhamento diante de corpos transgêneros, isso nos lembra que ainda há muito trabalho a ser feito para que todos os corpos sejam aceitos e valorizados como dignos de existir.
A luta queer é uma luta por uma sociedade mais inclusiva e justa, na qual cada indivíduo possa ser verdadeiramente livre para ser quem é, e a presença de pessoas trans e travestis nessa luta intensifica e dá maior visibilidade a todo o movimento queer.
Referências
- BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (2018)
- LUSTOSA, T. (2016). Manifesto Traveco-Terrorista. Revista Concinnitas, 1(28), 384–409.
- MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. São Paulo: Autêntica, 2012.
- RODOVALHO, Amara Moira. Cis By Trans. Revista Estudos Feministas [online]. 2017, v. 25, n. 1 [Acessado 27 Setembro 2023], pp. 365-373
- CasaNem | OGlobo
- CasaNem | Brasil de Fato
- Mulheres Trans que fizeram diferença na luta LGBTQ+ | Resistência Arco-íris
Ficha técnica
Escrita: Gianni Gomes e Ingredy Boldrine
Leitura crítica: Bibiana Hotta
Revisão: Anna Helena Silvestre Di Iório e Juan Larrosa