Pronome Neutro Existe?

A linguagem neutra não consiste de apenas uma, mas sim de várias formas de ocultar os marcadores de gênero, sejam eles sociais ou gramaticais¹, durante a comunicação. Ela pode se dar, por exemplo, através do uso de termos generalizados, como trocar o uso do masculino plural genérico, por exemplo “boa noite a todos” por “boa noite a todas as pessoas” ou “sejam bem-vindos” por “boas vindas”. Há, ainda, outras formas de neutralizar uma língua , como o uso dos pronomes neutros, que vêm causando polêmica tanto no meio conservador quanto entre aquelas pessoas que são — supostamente — mais abertas a mudanças e à diversidade.

Os pronomes neutros consistem em alternativas para os habituais pronomes masculinos (ele, todos, meu, seu, nosso etc) e femininos (ela, todas, minha, sua, nossa etc) e são usualmente utilizados para se dirigir a pessoas específicas que preferem que o gênero gramatical dirigido a elas corresponda ao seu gênero social. Os mais comuns são “elu”, “ile” e “todes”, mas existe toda uma gama de pronomes, juntamente de adequações em adjetivos e outras palavras que podem necessitar de alterações de gênero.

No entanto, apesar do uso de tais pronomes vir crescendo significativamente, ele não se encontra oficialmente dentro da gramática do português brasileiro. Por isso, é comum observar falas apontando que o pronome “elu” não existe ou que ele está “matando o português”. Interessa, então, analisar se os pronomes neutros e a linguagem neutra inclusiva estão, realmente, “matando” a língua portuguesa.

Marcos Bagno, um dos mais conhecidos linguistas brasileiros, aponta em seu livro Políticas da Norma e Conflitos Linguísticos (2011) a problemática de compreender as línguas enquanto um sujeito com existência própria, quando na verdade, ela não existe por si só, mas é moldada pelos seus falantes, que as constroem com base em interação social e identidade particular. 

Tal visão é reforçada ao analisar de forma mais firme a gramática da língua portuguesa, em especial observando que o português ensinado nas escolas, com regras específicas e complicadas, não é exatamente o mesmo utilizado no dia a dia, seja nas favelas ou nos bairros pobres, seja nos bairros ricos ou em posições consideradas de prestígio, como na televisão ou em discursos políticos.

Desse modo, se torna possível compreender que a linguagem se molda com base em uma existência coletiva e cultural, e isso inclui também os preconceitos e as construções sociais que prejudicam grupos minoritários. Como exemplo, tem-se a norma do “masculino genérico”, isto é, o uso do masculino de forma “neutra” (entre muitas aspas!) para tratar homens e mulheres — note que não há menção de pessoas não-binárias, pois a existência delas não costuma nem mesmo ser posta em pauta. 

Consequentemente, também se torna possível compreender que para ir contra tais estruturas opressoras dentro da língua, é necessário utilizar a própria língua. Desta forma, o uso dos pronomes neutros é proposto enquanto forma de respeito para com ês próximes, em especial aquelus que sentem que os gêneros gramaticais feminino e masculino não acolhem a sua existência, mas também enquanto o levantar de uma bandeira contra toda a opressão de gênero, seja ela a misoginia, seja ela a transfobia. Isto se reforça com o uso político da neutralização em palavras que já são consideradas neutras socialmente, mas possuem um gênero gramatical. 

A língua está em movimento desde antes de sua criação, das transformações do latim até o tornar-se português. Ao longo dos anos, observou-se a mudança de vossa-mercê para vosmecê, vascê, você, ocê, cê e, mais atualmente, vc. Nos dias atuais, também é possível se deparar com muitas linguagens e gírias exportadas da internet, em especial de jogos, como tankar, base etc.

No Brasil, o uso dos pronomes neutros começou a se popularizar por volta do ano 2000, com o @ (el@), e hoje avança para algo mais concreto e acessível através do elu, do ile e das demais formas de fuga da dicotomia ele/ela. Esta mudança, como muitas outras na língua, se dá com base na necessidade da sociedade, de forma gradual com base em seu uso, e com certeza não é em vão. 

¹O gênero social se caracteriza como aquele referente à identificação da pessoa na sociedade, como homem, mulher ou identidades dentro do espectro não-binário. Enquanto isso, o gênero gramatical se caracteriza como a divisão dentro da língua que classifica palavras como femininas ou masculinas, ainda que aquilo ao qual elas se referem não possuam um gênero social (por exemplo, umA cadeira possui um gênero gramatical feminino, mas não é uma mulher).


Referências:

  • LAGARES, X. C.; BAGNO, M. Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

Ficha Técnica:

Escrita: Viktor Bernardo Pinheiro

Leitura crítica: Arê Camomila da Silva

Revisão: Bibiana Christofari Hotta e Lara Moreno